23.10.08

Samuel Rawet, o erudito suburbano de escrita extremada


Acima, passaporte com que Sura Rawet chegou ao Brasil na companhia de três filhos

Se Samuel Rawet tivesse vivido na França ou na Itália, haveria placas de bronze e ônibus de turistas literários à porta das casas de sua infância e juventude no subúrbio carioca de Olaria. Mas o “writer’s writer” de texto contundente e apaixonante, o erudito leitor de Buber e Spinoza, é por ali um ilustre desconhecido. Aliás, desconhecido – e, mais que isso, incompreendido e rejeitado -- ele também foi, durante muitos anos, pela comunidade judaica.

Como o Museu Judaico fará uma mesa-redonda sobre sua obra [dia 28, terça-feira, às 18 horas], aproveito para sintetizar aqui alguns aspectos da trajetória de Rawet, de quem foram lançados em 2008 os Ensaios Reunidos (editora Civilização Brasileira, organização de Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus) e Samuel Rawet: fortuna crítica em jornais e revistas (editora Caetés, organização de Francisco Venceslau dos Santos). O livro da Caetés foi selecionado pelo Programa Petrobras Cultural na área de Preservação e Memória, que difunde conteúdos e acervos de interesse da memória das artes no Brasil.

DIVISOR DE ÁGUAS

Ao chegar de Klimontow, Polônia, em julho de 1936, em companhia da mãe, de um irmão e uma irmã, o menino anotado como Szmil Urys no passaporte materno tinha sete anos e só falava idish, língua na qual se alfabetizara. O pai começara no Brasil como clientelchik – vendedor a prestação de porta em porta – e depois teve lojas de móveis; o menino, leitor ávido, cresceu detestando tudo o que se referisse a comércio e a dinheiro.

Rawet estreou em 1950 -- com crônicas, críticas teatrais, editoriais e contos -- na revista O Espelho, do Grêmio Cultural e Recreativo Stefan Zweig, que funcionava no Centro Israelita dos Subúrbios da Leopoldina. As ruas onde a família viveu, em casas pequenas, alugadas, continuam empoeiradas e quentes, com seus nomes sonoros (Lígia, Leonídia, Andorinhas). As residências também continuam ali, mas é outro o perfil demográfico. A sinagoga da rua Juvenal Galeno, em frente à casa de vila onde os Rawet moraram, ainda funciona aos sábados, mantida pelos antigos moradores, em sua maioria filhos de imigrantes do leste europeu.

Se a vida comunitária e o som das rezas marcaram Rawet, também o marcou o estranhamento do universo brasileiro, e o apelido incômodo que deu título a Gringuinho, relato de exclusão que integra Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (Editora Objetiva, seleção de Ítalo Moriconi). Gringuinho foi publicado pela primeira vez em Contos do Imigrante, de 1956. Ano que, recorda o romancista Esdras Nascimento, leitor apaixonado de Rawet, foi apontado como um divisor de águas da literatura brasileira por causa da publicação de duas obras: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Contos do Imigrante.

Rosa e Rawet, juntos: a comparação não era pouca coisa para um escritor de 26 anos que se formara em Engenharia e cuja língua materna parecia fadada à extinção depois do Holocausto!

Rawet desejava ser brasileiro, mas não um brasileiro aburguesado, convencional, e sim um carioca livre das injunções familiares, dono e senhor de ruas, becos, botequins e sexo pago na Cinelândia. Repudiava a erudição para exaltar uma simplicidade que, de fato, nunca teve. “Sou fundamentalmente suburbano. Eu aprendi português nas ruas, apanhando e falando errado, e acho essa a melhor pedagogia. Eu aprendi tudo na rua” -- disse em entrevista ao escritor Flávio Moreira da Costa, jornal Correio da Manhã, 18/06/1972.

Por algum tempo, foi fiel à Lei do clã. Aluno brilhante, fez carreira bem sucedida como integrante da equipe que construiu Brasília. Foi o principal calculista do Congresso Nacional, tendo participado também de importantes projetos na França e em Israel. Até que um dia largou tudo. Segundo relatou numa entrevista, sua gota d’água existencial foi a visão, no final de uma escadaria da futura capital, de Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Joaquim Cardozo: ele, outsider de ego fraturado, não queria mais caber no quadro de senhores tão contentes consigo mesmos...

Nunca usou seus vastos recursos literários para idealizar o passado. Para ele, o shtetl ancestral já embutia a ingratidão, a perfídia, os males do mundo: “Ah, as neves da minha infância, ah, as doçuras das varadas que levei porque chutei uma bola na rua. Foram contar ao velho barbudo (já então havia delatores), e o homem espumou na sala do prédio da sinagoga...”, recorda, no ensaio Devaneios de um solitário aprendiz da ironia (1970), em que fala da teoria da consciência unificada no mesmo parágrafo em que lembra a humilhação e o gozo de saber-se homossexual.

Proclamou seu rompimento com o mundo judaico que conhecera (e não com o judaísmo em geral, como alguns entenderam erroneamente), ao publicar, em 1977, o ensaio Kafka e a mineralidade judaica ou a tonga da mironga do kabuletê. “Estou farto de pathos, farto de ahhs!, ohhhs!, uhhhs!, arreganhos de dentes, deboches (....)”, escreveu então. Anunciou que não queria mais saber de amigos judeus, comida judaica, negócios imobiliários judaicos...

Deus não existia, Freud era uma fraude, escreveu um dia. O que existia era a escrita vertiginosa, o mergulho sem rede, em tantos pontos similares aos de outros intelectuais atormentados. A imaginação delirante venceu aos poucos a sanidade. Foi um Samuel Rawet solitário que morreu em 1984, em Brasília. Mas não estava inteiramente isolado, pois os amigos escritores se preocupavam com ele e o acolhiam.

Se o poeta beat Allen Ginsberg, seu contemporâneo, homenageou a mãe, morta num hospício, com o Kaddish canônico, foi aos israelenses vivos que Rawet -- igualmente marcado pela doença mental da mãe -- dirigiu seu Kadish – Oração pelos vivos das Olimpíadas de Munique. As flores de retórica, as preces e o pranto são inúteis para os mortos, escreveu então, novamente “jovem”, novamente sionista, eternamente inquieto no difícil espaço entre pertencimentos díspares.

Retratos da Segunda Guerra







Acima, Carlos Scliar, artista plástico que serviu na FEB (Força Expedicionária Brasileira), em inaguração de uma exposição às vésperas do embarque para a Itália, em 1944. E obras da série Cadernos de Guerra, inclusive auto-retrato (1945), nanquim sobre papel.

O cabo de artilharia Carlos Scliar, nascido em 1920 em Santa Maria da Boca do Monte, Rio Grande do Sul, desenhava até em papel de pão tudo o que observava no front italiano [no que seria a série Cadernos de Guerra]. O jovem que se tornaria um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros é um dos personagens do livro Soldados que vieram de longe – os 42 heróis brasileiros judeus da Segunda Guerra Mundial, recém-lançado pelo professor Israel Blajberg, engenheiro e membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil.

O olhar sensível de Scliar não se voltou para cenas de batalhas nem gestos heróicos, mas para a gente simples e as paisagens do campo, ou para seus companheiros. Nas palavras do escritor Rubem Braga, então correspondente de guerra, os desenhos eram “evocações sóbrias” que comoveriam, “longe no tempo, os homens que viveram a bela e amarga aventura”.

Dos 42 soldados brasileiros judeus relacionados por Israel Blajberg, 13 ainda estão vivos. Filhos de imigrantes, eles nunca constituíram um grupo, pois a maioria não se conhecia. O livro recolhe deles as histórias que considera importantes. Como a do tenente de artilharia Salli Szajnferber, que participou do mais sangrento combate da FEB, com 574 baixas entre mortos e feridos, e foi o responsável por efetuar a prisão de 200 alemães.

Há casos como a repercussão da convocação dos irmãos Alberto e Moyses Chahon. A mãe deles, Matilde Gammal Chahon, a quem fora concedida a possibilidade de indicar apenas um dos filhos para ir à guerra, anunciou sua decisão, exaltada pela imprensa patriótica da época: “... ou vão os dois ou não vai nenhum ...”

Outra história é a do sargento de infantaria Jacob Perlmann, de Niterói: falando em ídiche a prisioneiros alemães, disse-lhes que poderia atirar neles, mas não o faria. "Se fossem vocês que tivessem me aprisionado, teriam me matado aqui ou num campo de extermínio, pois sou brasileiro e judeu. E é exatamente por ser brasileiro e judeu que não vou fazer isso com vocês".

15.10.08

Oitenta anos de Scholem Aleichem (o colégio, não o escritor!)




[fotos de “delegação” do Scholem Aleichem à Embaixada de Israel, 1958, e do professor Moysés Genes nas Olimpíadas Intercolegiais de 1971, na Hebraica].

Há pessoas cuja marca vai crescendo com o tempo, até se tornar lenda e ponto de inflexão para novas avaliações históricas. Esse é o caso do professor Moysés Genes, que dirigiu o Colégio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem de março de 1948 a julho de 1973. Não que ele, homem modesto, tenha buscado esse tipo de reconhecimento; mas o fato é que seu trabalho intenso, sua paciência e sua obstinação (ou teimosia, diriam os adversários) foram essenciais para um projeto pedagógico judaico laico muito bem sucedido durante décadas. O projeto do Scholem (que existiu também em outras cidades) floresceu com a utopia da construção do socialismo e decaiu em meio à acentuação das divergências no seio da esquerda e à mudança na mentalidade das classes médias judaicas.

Se não tivesse encerrado as atividades em 1995 (com a responsabilidade sobre o patrimônio entregue ao colégio Liessin, que vendeu o prédio da rua Professor Gabizo), o Scholem estaria completando 80 anos. O 80º. aniversário (junto com os 89 anos do professor Genes, como ele é chamado) será celebrado em festa na Hebraica no dia 1º. de novembro. Quem freqüentou o Scholem, meu caso, recorda como ele foi importante para congregar várias centenas de famílias que queriam dar aos filhos uma educação judaica aberta, democrática, baseada em cultura e não em religião. Ali, o levante do gueto de Varsóvia era um momento heróico muito próximo, sempre emocionante. O que não significava, na visão do professor Genes, obedecer, sobretudo depois da Guerra dos Seis Dias, à posição anti-sionista dos primórdios do judaísmo progressista. Isso, e muito mais, é o que ele mostra no alentado livro de memórias que lançou em 2002, O 11º. Mandamento (Editora Espaço e Tempo).

Para quem tem menos de 40 anos, as dezenas de entrevistas que o livro contém, além das reflexões e dos relatos de fatos, comprovam que a história do povo judeu é muito mais complexa do que sugerem os rótulos aprisionadores. O pertencimento cultural e a ética podem incorporar a fé sem colocá-la no centro do universo. Assim, não é contraditório que o professor Genes abra seu texto com os Dez Mandamentos, e acrescente o décimo primeiro, “Dirás sempre a verdade”, que ele criou para nortear a própria vida.

Para quem passou dos 40 anos, e viveu a juventude na Tijuca e arredores, o livro, e a festa que se prepara na Hebraica, são uma tremenda viagem "amarcord"...

Siné de volta (por Leneide Duarte-Plon)


O desenho acima, de Jiho (Jacques Olivier), está no novo e irreverente jornal de Siné. Abaixo, a notícia sobre o sucesso de Siné, postada no excelente blog cultural http://bilhetesdeparis.blogspot.com/, da jornalista brasileira Leneide Duarte-Plon.

Quando Siné foi despedido de “Charlie Hebdo” pelo diretor do jornal, Philippe Val, sob acusação de anti-semitismo, o humorista e caricaturista mais irreverente da imprensa francesa decidiu que não iria calar a boca.

Sentindo-se injustiçado ao ser demitido de “Charlie Hebdo”, Siné abriu um processo contra Val e fundou um jornal tão irreverente e mal-educado quanto o dono. Como carimbo “Siné Hebdo” exibe um garoto levado fazendo caretas dentro de um círculo duplo onde se lê “Le journal mal élevé” (O jornal mal-educado). O número 1 de “Siné Hebdo” saiu dia 10 de setembro com uma capa em que uma caricatura sua faz um gesto obsceno com a mão que mostra um dedo e diz: “Olha eu de novo!”

E como prova de que os quatro números já publicados incomodam, os computadores da redação do jornal foram roubados no domingo, 5 de outubro. Obviamente, nos computadores estavam os textos do número que sai na quarta-feira, 8. Catherine Sinet, que é diretora de redação do jornal, já tinha denunciado à polícia uma série de ameaças recebidas por telefone de uma organização extremista judaica.

Com a saída do número 4 no dia 1° de outubro, o jornal contabiliza um mês de vida e mantém o nível de interesse dos leitores dispostos a apoiar o trabalho de um grupo de cartunistas e jornalistas revoltados com a acusação a Siné, ao qual se juntaram nomes como Michel Onfray e Michel Warschawski. O primeiro é um professor de filosofia, um iconoclasta de carteirinha, que escreveu, entre outros, um “Tratado de ateologia” e cujos livros e DVDs são best-sellers em toda a França difundindo a filosofia entre o maior número possível de leitores. Para isso, ele fundou uma universidade livre, totalmente gratuita, na cidade de Caen, a poucas horas de Paris.

Warschawski é um intelectual israelense, autor de diversos livros sobre o conflito israelo-palestino e defensor incondicional da causa palestina. No seu primeiro artigo para “Siné Hebdo”, o filho do rabino Warschawski diz que em seu artigo semanal não falará jamais do que se convencionou chamar “processo de paz”. “Siné me pediu uma coluna na qual falarei das realidades políticas, sociais e culturais dessa região do planeta na qual vivo, milito e escrevo. Ora, o “processo de paz” é exatamente o contrário de uma realidade: é vento, virtual, alguns diriam que ele é pura propaganda política”, escreve o escritor.

Há três meses, ao ser acusado de anti-semitismo, Siné reagiu energicamente:

"Quanto ao meu suposto anti-semitismo, nunca fui anti-semita, não sou anti-semita, nunca serei anti-semita. Condeno radicalmente os que são anti-semitas, mas não tenho nenhum apreço pelos que, judeus ou não, jogam irresponsavelmente essa palavra abjeta na cara de seus adversários para desconsiderá-los, sabendo que esta acusação é o insulto supremo depois do Holocausto (Shoah). Isso está se tornando insuportável. No que me diz respeito, tenho tanta antipatia por todos os que, judeus ou não, defendem o regime israelense, quanto pelos que defendiam o apartheid na África do Sul. Há mais de 60 anos luto contra todas as formas de racismo e se tivesse tido idade de esconder judeus durante a ocupação o teria feito sem hesitar, como o fiz pelos argelinos durante a guerra da Argélia. Estou do lado de todos os oprimidos!"

O jornal de Siné tem o mesmo formato do outro do qual ele foi expulso. E se continuar a vender e despertar o interesse dos leitores como o primeiro número, vai longe. No editorial do número 2, o cartunista informa que o número 1 foi um sucesso de vendas (151 mil exemplares) e que o fato de terem conseguido fundar o jornal com tão pouco dinheiro era um milagre que deveria continuar a ser apoiado pelos leitores.

No primeiro número, o cartunista se se congratulou com os leitores pela criação do jornal “mal-educado, impertinente, libertário, em cores e barato” (dois euros). Para continuar a viver sem nenhum anúncio publicitário como outro tradicional e respeitado jornal satírico “Le Canard Enchaîné”, “Siné Hebdo” só conta com o apoio de seus leitores. Siné escreveu um pequeno texto pedindo doações para a associação “Les mal-élevés”:

“Não tenhamos ilusão. Temos de contar com o silêncio da mídia. Muitas pessoas nos detestam e vão fazer tudo para nos sabotar”. O texto tem um título provocante: “Pare de beber (provisoriamente) e de fumar (se for possível) e envie o dinheiro economizado pra gente”.

Pedido de doações mais irreverente, impossível.

11.10.08

Judith Malina no Rio: trabalho é oração e louvor


Mito da contra-cultura nos anos 60 e 70, um ícone dos jovens que tinham como slogan o "é proibido proibir", Judith Malina, que junto com o marido Julian Beck criou o Living Theatre, esteve semana passada no Rio de Janeiro, onde recebeu uma medalha do Ministério da Cultura e deu um concorrido workshop para atores e diretores teatrais (organizado pela CAL no Sesc-Copacabana).

Todo o processo foi filmado pela cineasta Adriana Figueiredo, inclusive a emocionada chegada de Judith à sinagoga da ARI, em Botafogo, no final do Iom Kipur. Era uma tarde fria e a sinagoga estava cheia. Extremamente vital, olhos brilhantes e atentos, a miúda Judith, filha de um rabino e de uma ex-atriz que emigraram da Alemanha para os EUA em 1928, continua, aos 82 anos, anarquista, graças a Deus... Escreve tudo o que lhe acontece num caderno/diário (já tem 600 deles, alguns publicados). Jejuou no Iom Kipur, apesar de nao ter interrompido o workshop, pois vê seu trabalho como uma oração e um louvor ao Criador. Atualmente, o Living Theatre está apresentando, num espaço sem cadeiras e com total participação do público, o espetáculo Eureka, concebido sobre obra de Edgar Allan Poe por Hanon Reznikov, o segundo marido de Malina, e continuado por ela quando ele morreu em maio último.

Quando lhe perguntei se a religião não entra em contradição com sua vida radical (ela mantém até hoje todas as propostas do Living Theatre), ela respondeu que não, pois segue o que o coração lhe dita e não as regras fixas do judaismo rabínico. Ao acender as velas na sexta-feira à noite, não o faz porque é obrigatório, diz, mas para honrar a si mesma, aos ancestrais, e sentir-se unida às milhões de mulheres judias que o fazem no mundo inteiro.

Para quem não lembra, Judith e Beck foram expulsos do Brasil em 1971, por decreto do ditador Emilio Garrastazu Médici, depois de ficarem presos dois meses, acusados de prejudicar a ordem pública em Ouro Preto com seu grupo que fazia teatro nas ruas. Os "cabeludos" foram chamados de subversivos (ó palavra subitamente antiquada!) pelas autoridades locais. A medalha de agora não apaga o ocorrido, mas foi recebida com emoção por Judith, que diz gostar muito da criatividade dos brasileiros. Na ocasião da expulsão, ela escreveu o seguinte no seu diário:

“E assim teremos que deixar o Brasil. O julgamento continuará sem nós. O silêncio no Tribunal é pesado. O silêncio sombrio dos advogados está misturado de outros sentimentos. Nosso silêncio é igualmente estranho. Está quase tudo acabado. Deixamos Ouro Preto pela última vez. Nossos amigos, em grande número, reúnem-se em torno do ônibus [...] O ônibus sobe a rua Direita. Com o meu rosto apertado contra a janela do ônibus,as lágrima descem de repente. Eu amo o Brasil. Na Praça Tiradentes tudo está muito calmo. Dois estudantes estão sentados na base do monumento a Tiradentes. Quando nosso ônibus passa, um deles levanta a mão com o punho cerrado.

Quando chegamos ao DOPS, as luzes das câmaras e os flashs nos põem tontos. Repórteres, advogados, mil perguntas: quando? Quais as notícias oficiais? O que há sobre os brasileiros do grupo? Para onde vamos? Quando vamos ser soltos? O que significa ser banido? Poderemos voltar um dia?

Levará tempo antes que tudo fique claro. Agora apenas dizemos isto: estaremos tristes por deixar o Brasil. Queremos voltar".


Veja mais sobre o grupo em http://www.livingtheatre.org/

2.10.08

Paul Newman como herói de Israel



Meses antes da morte de Paul Newman, em 26 de setembro último, aos 83 anos, um dos seus personagens inesquecíveis tinha voltado à tona no mundo judaico: Ari Ben Canaan, que há meio século foi o protagonista do filme Exodus, baseado no livro de Leon Uris, foi muito citado pela mídia de Israel durante a celebração do 60º. aniversário do país, quase como se tivesse sido um herói da vida real.

Bonito, ousado, viril, desafiando os ingleses e derrotando os árabes, conquistando o coração de uma bela mulher enquanto comandava um navio repleto de sobreviventes do nazismo, o irresistível Newman/Ben Canaan parecia um mocinho de filme de faroeste transplantado para o Oriente Médio.

Se o roteiro do filme, e o livro, foram ou não inteiramente fiéis aos fatos, não importa. O que importa é que, em termos de imaginário coletivo, o filme, dirigido por Otto Preminger, se tornou um libelo favorável ao Estado de Israel. Com o livro, ajudou a forjar a percepção do público ocidental em relação à criação de Israel e ao sionismo. Em vez do antigo personagem judeu neurótico e vulnerável, sempre às voltas com perseguições reais e imaginárias, Exodus exibia um guerreiro ético, pronto para morrer em grande estilo por um projeto coletivo.

O fictício Ari Ben Canaan acabou ganhando status de mito fundador e representante de um povo. Numa cena do filme, ele fala dos fornos crematórios e da solidão dos judeus no pós-guerra. “Não temos amigos, só temos a nós mesmos. Lembre-se disso!” – diz a um companheiro da resistência judaica.

Leon Uris contava ter lido centenas de livros de História judaica e israelense antes de escrever seu romance em torno da viagem do Exodus e da luta pela criação de Israel. Publicado em 1958, o livro vendeu mais de 20 milhões de exemplares nos EUA nos anos seguintes e foi traduzido para dezenas de línguas.

McCain favorito entre os ortodoxos

Embora a maioria dos judeus norte-americanos tradicionalmente prefira os candidates democratas aos republicanos (a proporção é de quatro por um, segundo estimativas divulgadas pelo jornal Forward), a Republic Jewish Coalition (RJC) consegue levantar mais fundos que o National Jewish Democratic Council (NJDC). As duas organizações, criadas na década de 1980, não são obrigadas a declarar tudo o que arrecadam nem a identificar seus doadores, mas sabe-se que os judeus republicanos são financiadores mais generosos, como Sheldon Adelson, o bilionário dono de cassinos. De acordo com algumas fontes, a RJC arrecadou 4,5 milhões de dólares em 2006, contra 1,3 milhão da NJDC. A disparidade teria diminuído em 2008, mas ainda não há números finais disponíveis.

Entre os ortodoxos, John McCain é o franco favorito em relação a Barack Obama (78% contra 13%), segundo uma pesquisa do American Jewish Committee (mais detalhes em artigo de Eric Fingerhut no www.blogs.jta.org/politics). Segundo um pesquisador de opinião pública ligado ao Partido Democrata, Mark Mellman, os ortodoxos estão mais preocupados com Israel que os demais eleitores judeus, entre outras razões porque a maioria deles têm filhos ou outros familiares que emigraram para o país, e sentem mais confiança em McCain para defender os israelenses.

Um dos anúncios republicanos tem como título “Assessores de Barack Obama: pró-palestinos, anti-Israel, hostis à América”. O NJDC lançou, em Rosh Hashaná, uma a mensagem intitulada “A New Year, a New Direction” [Ano Novo, Nova Direção] afirmando que “Barack Obama está comprometido com a segurança e a proteção de Israel” e lembrando que o Senador co-patrocinou o Ato anti-terrorismo palestino e conclamou a União Européia a acrescentar o Hezbolá à sua lista de organizações terroristas.

Há mais, porém. Os ortodoxos, aponta Mellman, rejeitam a retórica liberal da maioria dos democratas em assuntos ligados a comportamento. E, num país que teve na escola pública universal e gratuita um dos pilares da sua democracia, outro ponto apreciado pelos ortodoxos, cujas famílias são maiores, é a defesa que os republicanos fazem de um sistema de compensação patrocinado pelos cofres públicos (créditos fiscais, por exemplo) para as crianças que freqüentam escolas religiosas privadas.

A batalha por corações e mentes tende a aumentar até a eleição e valem todas as imagens para dar ênfase às idéias. Mas a RJC reagiu com indignação ao comentário, feito pelo deputado democrata Alcee Hastings, de que os judeus devem desconfiar da candidata a vice-presidente pelo Partido Republicano, Sarah Palin, porque “qualquer pessoa que carrega armas e arranca a pele de alces não se importa muito com o que fazem com judeus e negros”. Hastings, que é negro, fez o comentário durante a conferência anual do NJDC, referindo-se ao fato de Palin orgulhar-se de ser uma exímia caçadora, de família de caçadores.

Irène Némirovsky: identidade e auto-ódio judaico


A vida da escritora Irène Némirovsky confirma que é impossível, em certos momentos históricos, renegar o judaísmo. Questões de identidade e pertencimento, amor e ódio, rejeição e obsessão, avultam com tamanho impacto que o tema passa a suscitar novas reflexões. Agora mesmo, o Museum of Jewish Heritage - A Living Memorial to the Holocaust, em Nova York, inaugurou a exposição Woman of Letters (que vai até 22 de março de 2009) sobre a vida e a obra da escritora. Nascida em 1903 em Kiev, de família abastada com a qual emigrou para a França após a Revolução comunista, tornou-se uma celebridade literária nos anos 30 e morreu em Auschwitz em 1942, embora tivesse se convertido ao catolicismo e sido colaboradora da imprensa anti-semita francesa.

Ao ser presa, Irène deixou uma pequena mala com fotos de família, um diário e o manuscrito da Suíte Francesa (no Brasil, edição da Companhia das Letras, tradução de Rosa Freira D'Aguiar), redescoberto pela filha Denise e publicado em 2004. Antes de ser obrigada a fugir da Paris ocupada pelos nazistas para o interior, Irène, que havia sido educada em francês, na melhor tradição da classe dominante russa, publicara mais de dez romances, alguns deles repletos de personagens judeus estereotipados, tipos avarentos e desqualificados.

Suíte Francesa, escrito durante a guerra, é, ao contrário, um livro cheio de empatia pelo sofrimento humano, com a ótica de alguém que, tendo mudado de lugar social, se vê num beco sem saída. Quando Irène foi presa, em 1942, o marido chegou a ir até o embaixador alemão pedir sua libertação, alegando que ela, além de ter se convertido, jamais escrevera nada que fosse generoso em relação aos judeus. Então, por que uma exposição nos EUA sobre essa mulher cuja empatia chegou tarde demais, e que foi “amiga dos carrascos” antes de ser lançada na mesma vala comum dos outros judeus que tanto desprezava?

A controvérsia precedeu a exposição, já que museus do holocausto costumam caracterizar-se por passar mensagens claras e não ambíguas. A explicação do diretor David Marwell e da curadora Ivy Barsky para sua opção de realizar a mostra foi a seguinte:

“Quando se é responsável, como nós somos, por narrar a complexa e difícil história que é o tema do nosso Museu, aprende-se seguidamente que o contexto é crucial. Em nossa exposição sobre Irène Némirovsky, contamos a história de uma mulher verdadeira que viveu numa época e num lugar específicos e foi confrontada com desafios inconcebíveis e inimagináveis.

A popularidade monumental da Suite Francesa e o intenso interesse pela vida da autora deram-nos aquilo que chamamos, em educação, de um momento didático – uma oportunidade de influenciar aqueles que se sentem intrigados por Némirovsky, aqueles que de outra maneira não cruzariam nossas portas, e envolvê-los no diálogo. Essa é uma oportunidade de reunir um rosto a um nome, e de contar a fascinante história dessa família e dessa vida literária, que foi, todavia, muito curta”.

Vale a pena entrar no site do Museum of Jewish Heritage para ver páginas do manuscrito da Suíte Francesa e ouvir o depoimento de Denise sobre a mãe. http://www.mjhnyc.org/irene/index.htm