6.12.08

Presença de Leon Hirszman


Com uma projeção do longa-metragem São Bernardo , foi lançado em 4 de dezembro, no Rio de Janeiro, o segundo DVD de títulos restaurados pelo projeto Leon Hirszman. Como este não é um blog sobre cinema, não é porque São Bernardo foi um filme inesquecível que faço esse registro. É porque Leon foi uma figura de importância fundamental para o cinema brasileiro e, sempre retratando o povão em todas as suas variáveis, foi também um “mensch” (pessoa honrada, “gente”) na mais plena acepção da palavra judaica.

A estética de Leon foi influenciada por sua postura ética e uma visão humanista de esquerda construída desde a infância. Tivesse ele nascido nos EUA e a crítica talvez o qualificasse de Jewish-American (como às vezes faz com Woody Allen). Mas no Brasil, para o bem e para o mal, as origens ficam diluídas, e o “ser” judaico de Leon pouco foi abordado, até mesmo porque as questões existenciais foram relegdas a segundo plano pelas urgências políticas e sociais de sua época na América Latina. A exceção é o livro O Navegador das Estrelas (editora Rocco), de Helena Salem, emocionado e objetivo ao mesmo tempo. Helena entrevistou dezenas de pessoas que conviveram com o cineasta, inclusive suas irmãs, Shirley e Anita, e situou vida e obra de Leon sobre um significativo painel sócio-cultural.

Leon nasceu no Rio em 22 de novembro de 1937, filho de imigrantes poloneses, e estudou no Colégio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, na Tijuca, onde a família morava. O pai tinha uma pequena sapataria em Vila Isabel e todos os dias, na hora do almoço, a mãe pegava o bonde na rua Haddock Lobo para levar-lhe a comida recém-preparada. A convivência com as idéias de esquerda do pai (que perdeu toda a família em campos de concentração) e a religiosidade materna ajudaram-no a forjar uma atitude de aceitação dos opostos: era anti-machista, anti-preconceituoso, anti-autoritário. Dizia que o pai influenciara seu engajamento social e sua repulsa a qualquer forma de obscurantismo.

Em entrevistas, contava que acordara para o cinema em 1954, com o movimento para a liberação pela censura do filme Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos. Quando se tornou um dos fundadores da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, em 1958, era estudante de Engenharia e fazia parte de um grupo de jovens que queria discutir e produzir um cinema brasileiro com linguagem e temática próprias, longe dos padrões hollywoodianos.

Meio século depois, dá para dizer que eles foram bem sucedidos e deixaram uma herança bendita (Leon Hirszman faleceu em 1987).

Prêmio para A Chave de Casa


Assinado por Mônica Grin e Michel Gherman, coordenadores do NIEJ, recebi o seguinte mail:

É com prazer que a coordenação do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ (NIEJ) divulga as recentes premiações de duas de nossas pesquisadoras associadas, Tatiana Salem Levy e Kátia Lerner. Tatiana ganhou o Prêmio São Paulo de literatura de melhor romance de autor estreante com o seu A Chave de Casa. Abaixo, um brevíssimo resumo do livro:

“Neta de judeus da Turquia e filha de comunistas do Brasil, a narradora recebe do avô a chave que abriria a porta da casa de Esmirna, para onde os avós fugiram durante a Inquisição (tal como os pais fugiram para Lisboa, anos mais tarde e por motivos diferentes). A autora faz desta procura pelas raízes da família o início de uma viagem de questionamento sobre si própria.”

Kátia Lerner ganhou o Prêmio Mário de Andrade, lançado pelo MinC, através do Iphan, e com apoio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), com a sua excelente tese de doutorado "Holocausto, memória e identidade social: a experiência da Fundação Shoah.

Como já li o livro de Tatiana, vou dar um palpite: ele é ousado, instigante, bem pesquisado, bom de ler, cheio de "pertencimento". E sem aborrecidos discursos edificantes. Foi elogiado por críticos do quilate de Moacyr Amancio. É o tipo de boa literatura que o meio de origem às vezes custa a absorver. Agora, com o prêmio, tomara que os judeus também corram para comprar A Chave de Casa.

Judeus: milênios de liberdade na Índia

Em artigo no site do The New Republic (www.tnr.com/politics) Naresh Fernandes, editor do Time Out Mumbai e cristão, comenta que a história milenar dos judeus na Índia comprova a liberdade de todas as religiões no país, Os judeus indianos, que têm bastante proeminência em Mumbai, onde ocorreram os recentes atentados, nunca sofreram perseguições. Entre eles estão os Bene Israel, que acreditam descender das vítimas de um naufrágio ao sul de Mumbai, em 175 a.C. Fiéis seguidores dos preceitos religiosos, eles falam uma das línguas indianas, o marahati, as mulheres usam saris, sua dieta é à base de arroz e curry. Em Mumbai, têm uma sinagoga construída em 1796. A comunidade Bene Israel produziu vários atores de Bollywood, músicos, políticos e um de seus membros mais conhecidos foi o poeta Nissim Ezekiel.

Segundo Naresh, havia cerca de 25 mil judeus na Índia em 1947, ano da independência, e o número caiu para 5.271 in 1991, devido à aliá. Os que ficaram, diz ele, estão perfeitamente inseridos na sociedade local e têm uma relação ambígua com Israel. E, quer sejam liberais, quer sejam ultra-ortodoxos, não se identificam de maneira nenhuma com os milhares de jovens mochileiros israelenses que anualmente viajam ao país depois do serviço militar e percorrem das praias de Goa às cidadezinhas no sopé do Himalaia (onde uma das atrações é a facilidade de adquirir drogas a preço baixo).

Pilar Rahola: guerra permanente contra o anti-semitismo

A catalã Pilar Rahola foi uma das convidadas do Quinto Congresso de Estudos Judaicos, tradicional encontro organizado pela professora Helena Lewin na UERJ. Como não pude assistir a nenhuma das mesas-redondas, lembrei de uma matéria que fiz com Pilar há cinco anos, no Rio. Dizem-me que ela continua a esgrimir com contundência seus pontos de vista (considerados reducionistas por alguns críticos) contra o anti-semitismo europeu e o integrismo islãmico. O reducionismo se explica pela necessidade de produzir imagens fortes e facilmente compreensíveis. Se isso combate com eficácia o anti-semitismo, não dá para garantir, mas seus muitos admiradores entre os judeus dizem que sim.

Vejam a matéria, publicada em O GLOBO em 22/10/2204, e tirem suas próprias conclusões.

Da Catalunha com paixão
Sorriso radiante, decote profundo, metralhadora verbal que atira em todas as direções, a escritora e jornalista catalã Pilar Rahola é famosa na Europa pela paixão com que defende suas causas variadas. Aos 46 anos, essa feminista pós-moderna, ex-militante da Izquierda Republicana Catalana --- partido pelo qual foi deputada e vice-prefeita de Barcelona – corre mundo denunciando tudo o que considera injusto e perigoso. Numa noite pode estar na TV espanhola, jurando boicotar para sempre os filmes de Pedro Almodóvar, porque ele, horror dos horrores, matou sete touros para rodar Fale com Ela. No dia seguinte voa para o Rio, ou Nova York, em campanha contra o integrismo religioso islâmico, que considera a maior ameaça para a humanidade neste início de século XXI.

“Se Deus existe, é mulher, negra, lésbica e pobre” – proclama, com a segurança de filha da alta burguesia católica, mãe de três filhos, que descobriu o feminismo “não por trauma pessoal mas por solidariedade”.


Para manter o equilíbrio em meio a uma agenda superlotada (só em 2003, cruzou o Atlântico 15 vezes), Pilar Rahola corre nove quilômetros diários na esteira do ginásio instalado nos fundos da casa de Badalona, em Barcelona, enquanto assiste na telinha aos programas femininos matutinos cujos lugares-comuns desanca em colunas nos jornais El País, El Periódico e Avui. A TV faz parte do “enxoval” do segundo marido, empresário basco com quem só se casou por exigência do governo russo, quando o casal foi à Sibéria adotar Ada, a terceira filha, hoje com 4 anos.

Pilar tem outros dois filhos, Noé, 12 anos, também adotado, e Sira, 24 anos, do primeiro casamento. Viajante incansável (esteve 20 vezes no Oriente Médio, cobriu conflitos como o dos Bálcãs e a guerra Etiópia-Eritréia), gosta de promover roteiros culturais familiares pela Europa. Antes das controvertidas declarações de José Saramago sobre os judeus e o Holocausto, feitas durante visita aos territórios palestinos, Pilar seguiu com Sira, em Portugal, todo o percurso do livro Memorial do Convento, lendo em voz alta, emocionada, as descrições do escritor. Agora, não hesita em defini-lo como “o exemplo mais relevante de que alguns podem escrever como anjos e pensar como perfeitos imbecis”.

Segundo Pilar, o anti-semitismo da esquerda européia, expresso por Saramago, é uma questão mal resolvida que remonta à Inquisição. Atribui ao anti-semitismo, na esteira da crise Israel-palestinos, a condescendência do pensamento politicamente correto ante o integrismo religioso islâmico, “o maior risco vivido pelo mundo desde o nazismo e o stalinismo”. A esquerda, acusa, repete erros do passado ao flertar com uma ideologia que desafia a modernidade.

As acusações, reiteradas no Rio durante palestra no Hotel Glória, a convite do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, não vêm embaladas em sisudez. Gestos expansivos, bem humorada, Pilar se define como uma libriana veemente, igualmente pronta a bradar contra o uso político da religião e a sonhar a utopia que descreve no livro Mujer liberada, hombre cabreado (editora Planeta, 2000):

-- A grande revolução do século XXI será a descoberta do homem por si mesmo, porque o machismo destruiu a mulher e o homem. A maior revolução feminina será a revolução do homem, que precisa libertar-se de seus medos, de sua necessidade de domínio, de sua insegurança. Por enquanto não existe esse homem novo, o que existe é o homem desconcertado com a mulher que exige responsabilidade compartilhada em casa, descobriu o orgasmo e compete no mercado de trabalho. É muita coisa para ele! A mulher suportou ser dominada por dois mil anos, mas depois que se levantou não vai voltar atrás.

Graças a uma campanha de que Pilar participou ativamente, o novo Código Penal da Espanha, de 1996, incluiu um artigo tipificando como delito penal a violência doméstica, antes considerada “falta” civil cuja única conseqüência era a multa, embora mate mais mulheres espanholas entre 25 e 35 anos que o câncer de mama . O “machismo criminoso” ibérico não cede facilmente. Um aspecto dele, adverte Pilar, são as touradas, responsáveis pelo fim de seu “idílio” com Pedro Almodóvar e pela ira com que os homens espanhóis a criticam:

-- Se tourada é cultura, então canibalismo é gastronomia – afirma.

Boa parte das posturas de Pilar talvez venham da valorização das mulheres em sua família, que teve membros fuzilados e empresas confiscadas durante a Guerra Civil:

-- Crescemos, eu e minha irmã, numa casa livre, onde se discutia de tudo no almoço e no jantar, embora do lado de fora existissem a educação católica e a ditadura de Franco. Aprendi com meu pai o sentimento da solidariedade. Um dia ele me disse que eu era judia, querendo dizer que assim devia me sentir para entender o que os judeus tinham sofrido.

A vida familiar incluía verões em Cadaquès, na quinta vizinha à de Salvador Dali, hoje museu, cujo muro pulava com as amigas, para conversar com o pintor. Estudante da Universidade de Barcelona, formou-se em Filologia Hispânica e Catalã, conheceu o mundo de mochila nas costas, bebeu na fonte de Simone de Beauvoir/Segundo Sexo e descobriu a dificuldade masculina de conviver com mulheres liberadas e bem sucedidas.

Para promover os direitos femininos no presente, diz, é preciso ir além do nível pessoal e defender primeiro o Estado laico. Daí o apoio à proibição do véu islâmico nas escolas francesas e a indignação com governos que proíbem o aborto legal, “o que leva milhares de mulheres à morte em abortos clandestinos”. Nenhuma fé, acrescenta, tem o direito de dar ordens a cidadãos livres. “Deuses em casa, leis na rua” é o lema do pacto republicano cujo rompimento seria trágico para o mundo, inflama-se. Em viagem recente ao Chile, comprou briga com a Igreja católica, que dificulta a aprovação do divórcio no país.

Pilar liderou a campanha que acabou tirando das livrarias da Espanha, há quatro anos, o livro em que um imã islâmico, com milhares de seguidores entre os imigrantes pobres norte-africanos, defendia o “espancamento leve” das mulheres pelos maridos em casos de “mau” comportamento.

A livre circulação no Oriente Médio de livros como o do imã – ou do Mein Kampf, de Hitler, e dos apócrifos Protocolos dos Sábios de Sião – não chega a espantar Pilar, por ocorrer numa região governada por “ditaduras despóticas e teocráticas que alimentam o fanatismo”. O que a espanta é a convivência dos europeus com os imãs mais fundamentalistas. Estes, financiados pelos sauditas, expulsaram as lideranças progressistas das organizações comunitárias islâmicas em várias cidades européias. As maiores vítimas do pensamento integrista são as mulheres:

-- Há hoje 135 milhões de mulheres vítimas de mutilação genital no mundo. Milhares de moças que vivem na Europa são enviadas todos os anos pelas famílias aos países de origem, principalmente na África, para a circuncisão do clitóris, um processo doloroso e arriscado, um crime. Por que aceitamos que isso continue? Dói-me que a dor feminina seja silenciosa e não tenha espaço na agenda política. Ainda existe lapidação feminina por adultério e isso não parece preocupar ninguém. Essa é uma das minhas broncas contra a ONU, organização tão inútil que recentemente nomeou a Líbia para presidir uma comissão de direitos humanos!

Ao mencionar a Líbia, Pilar Rahola ressalva: não sofre de islamofobia, “doença” que vitimou a jornalista italiana Oriana Fallaci. O que a jornalista catalã diz combater é “o islamismo paranóico, que pode destruir o Islã, assim como o nazismo quase destruiu a Europa e o stalinismo destruiu nossas utopias”. Acredita no sucesso de sua cruzada para que os pensadores de esquerda abandonem de vez a idéia de que os integristas, inclusive na sua vertente terrorista, representam algum tipo de rebelião dos pobres contra os ricos:

-- Na verdade, estamos diante de um fenômeno alimentado por elites milionárias e ditaduras que estão no poder há meio século e agora usam celular e tecnologia de ponta para praticar uma política medieval. O terrorismo é planejado para destruir a liberdade, não para distribui-la.