3.11.09

Logocausto: poética de Leandro Sarmatz


A poética de Leandro Sarmatz, gaúcho de 36 anos, é sofisticada, marcada por domínio formal e contundência. As palavras não sobram, nem faltam, e emocionam, como vocês podem ler lá embaixo,  em dois poemas de seu livro, Logocausto (Editora da Casa), recebido com elogios pela crítica de São Paulo, onde ele (que é jornalista e mestre em Teoria da Literatura) vive desde 2001.

Por que o título? Ele explica:

“Alguns dos poemas -- inclusive e principalmente aquele que batiza o livro -- tratam de temas que fazem parte das minhas preocupações como leitor/poeta/judeu brasileiro/filho de pais que formaram a primeira geração da família a nascer no Brasil. O eclipse do iídiche é uma dessas preocupações. Minha avó paterna morreu sem falar português -- a não ser palavras para a sobrevivência diária, como "carne", "pão", "manteiga".
Leandro observou, na geração dos pais, nascidos entre os anos 30 e 40, a extinção do idioma que eles haviam falado na infância:
“E não é a extinção só da língua, afinal, mas da visão de mundo, do ethos, de coisas como humor e lamento, piada e praga. Enfim, um mundo inteiro morreu junto com o idioma, como sabemos desde o final da Segunda Guerra. Essa questão, que para muitos pode soar excessivamente intelectual ou até mesmo artificiosa -- bossa de poeta --, para mim tem papel central nas coisas que escrevo e que penso!"
Mas o não-pertencimento, e a errância fadada ao fracasso, também viajam a outras latitudes judaicas, como a península ibérica, e marcam Yehuda Ha-Levi, poema sobre o poeta e teólogo espanhol (1075-1141), que morre ao chegar a Jerusalem, depois de uma vida inteira ansiando pela Terra Santa.

Em 2010 a Editora Record vai publicar o livro de contos de Sarmatz, Uma Fome, e em abril sua peça Mães e Sogras estreia em Porto Alegre.

Logocausto

Uma língua de mortos. Idioma anti-segredo, a sibilar no espelho
seu eco de cova no indo-europeu ainda.
Todas aquelas bocas costuradas, milhões de bocas e mais nenhuma.
Onde haverá céu para suportar tantas vozes elevadas?

Onde encontrar a malícia, aquela impertinência duradoura?
(Luz do leste reprojetada em tumbas: sintaxe que se sente
em casa. Expulsa
e vai: expulsa.)

Palavras não são coisas nem pessoas.
São um nada, uma piada, uma praga, um lamento surdo
um exílio.

E essa morte infinita, multiplicada,
boca contra boca ouvido contra ouvido
boca e olvido — verme, terra e vernáculo.

Vozes submersas: e eu petrificado, gaguejando minha mudez-cimento.
Uma calma forjada: porque se eu soubesse conversar com as sombras,
se eu mastigasse as palavras, e delas um suco que não fosse áspero escorresse abrindo os diques da memória,
irrigando os rios-palavras,
fertilizando campos do idioma —
aí sim: eu estaria mais só do que já estou.

Yehuda Ha-Levi

Logo mais a porta, e atrás jaz a cidade.
Há épocas, gerações, pontos cardeais.

Lá dentro, os telhados e as cúpulas
refletem a luz escassa do findar do dia.

Pensa: Sfarad ficou em algum lugar,
em outra parte, noutra metade,

no oriente e no ocidente, na terra
e nas veias e no ouro. Aqui é leste.

Em algum ponto da Europa, filha
esquiva que, à beira dum abismo,

pisca os olhos e ajeita as tranças,
alguém ou algo: homem, planta,

animal ou pedra, adormece e vai
morrendo, aninhado em neve e luto.

Aqui, não: há sol, é bem verdade,
um sol todo à vontade, sol a pino

que desfalece as folhas, seca a vida,
enegrece a pele, frita o cocuruto.

Mas é um sol dele, Adonai, sol
que ali pendurado o dia todo fica.

Um sol que ele procura, e acha,
mas no fim (Moisés recalcitrante)

não consegue virar a ampulheta,
e tomba à margem, à porta da cidade.

Morre. Antes, clama ao Deus pesaroso
e cinza: essa nuvem, esse vazio, essa morte.