Entretido com a sobremesa e com a taça de um saboroso Tokai que o anfitrião compartilhava conosco, levantei o olhar da torta alemã e respondi que aquilo não era pergunta, era resposta. Pensando em voltar a me ocupar do néctar reluzindo na taça de cristal, dei,inutilmente, a pergunta por respondida.Nem bem retomei a trajetória do garfo em direção à torta quando fui impedido de prosseguir no meu gesto por uma explosão que encheu a noite de gritarias que não pararam mais. Palavras como sionismo e nazismo eram pitéus saboreados com raro prazer apesar da sobremesa tão elogiada. Um dos presentes, antropólogo recém chegado do estrangeiro, quando foi possível, comentou que em suas viagens pelo mundo cansou de ver este assunto, o conflito Israel e palestinos, tirar do sério muitos intelectuais de renome, tornando-os incapazes de qualquer julgamento equilibrado. Coisa que considerei normal.
Em plenos anos dourados, eu era um garoto que brincava carnaval no bloco do sujo e corria com a meninada sobre o chão de pé de moleque na vila em que vivíamos na Rua de Sant’Anna da Praça Onze. Ali, bem no centro do Rio, volta e meia me perguntavam por que não me benzia quando passava um enterro. Quando a minha mãe, judia polonesa que fugiu de sua querida Varsóvia em julho de 1939, me flagrou tentando dar uma resposta à pergunta persistente, vaticinou com ar de quem conhecia aquela prova: “Não adianta, eles não vão te entender”.

Hoje, teimando em desobedecer à Dona Malka, me pego pensando se as crianças da vila de Sant’Anna não estariam dramatizando um ritual onde acusavam e puniam os judeus pelo crime de matar um Deus que, isso ninguém lhes contava, era tão judeu quanto Judas? Submetendo Judas às pauladas e ao fogo, repetiam o que no passado foi feito aos judeus vingando o assassinato de Deus. Trabalho mental e cultural onde as palavras precisam denunciar e disfarçar com a ajuda de jogos e ritos o mesmo ódio que a qualquer hora pode explodir na mente de pessoas equilibradas. Como aconteceu na Europa culta e racionalista na segunda guerra mundial.
Será que o Ocidente conseguirá um dia desfazer a judaização do judeu enquanto sinônimo de maldade? A palavra judiar não desvela uma cultura que fundiu maldade-satanás-judaísmo numa cadeia de significações cravada no seu mundo mental e afetivo? No Pessach os judeus não costumavam raptar um menino cristão e assassiná-lo com os mesmo suplícios do Deus-menino-Jesus? Na sexta feira da paixão de Cristo, quando depois dos sermões o povo invadia o bairro judeu para vingar com sangue e fogo o eterno morrer e ressuscitar de Jesus, o que faziam não era tornar real o drama encenado na vila de Sant’Anna? Não foi Santo Agostinho que, a propósito de Jesus e os Judeus, ensinou que estes “coroaram-no de espinhos, aviltaram-no cuspindo-lhe na face, flagelaram-no, transpassaram-no com uma lança” acrescentando que, com “na sua dispersão e sua desgraça são um povo testemunha do demônio e da verdade cristã, subsistem para a salvação da nação cristã, mas não para a própria”. Foi assim que ele criou a doutrina do Povo Testemunha.
Os Judeus deveriam sofrer sem ser destruídos para validar permanentemente a verdade da Igreja. Mas, ao ditar esta razão, aceita, difundida e aprimorada ao longo dos séculos, sem perceber, Agostinho equiparava o suplício dos judeus ao sofrimento do Jesus que eles reviviam em seus corpos submetidos à dor. Agostinho, o grande pensador católico, também desenvolveu outra doutrina que se tornou importante na historia das relações da igreja com os de Israel. Segundo aquela doutrina eles seriam o “Bibliotecário Escravo” carregador das antigas Escrituras para provar que estas caducaram na medida em que o filho mais novo triunfara sobre o mais velho.
Diante de tal imaginário cultural quem sou eu para tentar conversar sobre um conflito que arranca as pessoas de seu equilíbrio racional em qualquer lugar do mundo ocidental e cristão?
Bem que a minha mãe me avisou.
( Rio, entre 2007 a 2008 )
Paulo Blank é psicanalista e escritor.