13.7.10

Um Bibliotecário Escravo - de Paulo Blank *

Sentados ao redor da mesa de jantar e deixando o pensamento vagar por diferentes assuntos, os amigos aproveitavam a noite fresca da casa em Botafogo quando alguém, achando a conversa um tanto vadia, infiltrou uma palavra-bomba disfarçada de pergunta inocente. Permaneci calado e fingi que não era comigo. Existem assuntos que, na minha idade, evito discutir. Sem considerar o meu silêncio, uma delas correu atrás do meu olhar e quando o encontrou disse cheia de certeza que, em definitivo, entendeu o problema palestino depois de ter assistido “Nossa Música”, um filme do Godard. Segundo concluiu de um diálogo do filme, a razão de tudo era a falta de poetas em Israel. Dito isto calou-se à espera da minha reação.

Entretido com a sobremesa e com a taça de um saboroso Tokai que o anfitrião compartilhava conosco, levantei o olhar da torta alemã e respondi que aquilo não era pergunta, era resposta. Pensando em voltar a me ocupar do  néctar reluzindo na taça de cristal, dei,inutilmente, a pergunta por respondida.Nem bem retomei a trajetória do garfo em direção à torta quando fui impedido de prosseguir no meu gesto por uma explosão que encheu a noite de gritarias que não pararam mais. Palavras como sionismo e nazismo eram pitéus saboreados com raro prazer apesar da sobremesa tão elogiada. Um dos presentes, antropólogo recém chegado do estrangeiro, quando foi possível, comentou que em suas viagens pelo mundo cansou de ver este assunto, o conflito Israel e palestinos, tirar do sério muitos intelectuais de renome, tornando-os incapazes de qualquer julgamento equilibrado. Coisa que considerei normal.

Em plenos anos dourados, eu era um garoto que brincava carnaval no bloco do sujo e corria com a meninada sobre o chão de pé de moleque na vila em que vivíamos na Rua de Sant’Anna da Praça Onze. Ali, bem no centro do Rio, volta e meia me perguntavam por que não me benzia quando passava um enterro. Quando a minha mãe, judia polonesa que fugiu de sua querida Varsóvia em julho de 1939, me flagrou tentando dar uma resposta à pergunta persistente, vaticinou com ar de quem conhecia aquela prova: “Não adianta, eles não vão te entender”.

Quando ela usava a palavra “entender” eu já sabia que ela estava me dizendo que existem situações onde a razão não funciona. O ouvinte, prisioneiro de alguma crença, não consegue alcançar o entendimento do outro. O outro deixa de fazer diferença, faça ele o que fizer. Talvez tenha sido por isso que a Sarita,uma amiguinha da vila e muito mais inocente do que eu, quando quis aderir à malhação do Judas, foi afastada por ser judia e assassina de Deus. Enquanto isto, respaldado na sabedoria materna, eu só saia de casa no sábado de Aleluia depois de ver o fantoche de pano abandonado bem em frente da nossa porta para acabar de arder. Quando as labaredas terminavam e os ânimos se acalmavam, eu voltava à brincadeira na rua passando por cima das cinzas que a mãe varreria no abrigo da noite.

Hoje, teimando em desobedecer à Dona Malka, me pego pensando se as crianças da vila de Sant’Anna não estariam dramatizando um ritual onde acusavam e puniam os judeus pelo crime de matar um Deus que, isso ninguém lhes contava, era tão judeu quanto Judas? Submetendo Judas às pauladas e ao fogo, repetiam o que no passado foi feito aos judeus vingando o assassinato de Deus. Trabalho mental e cultural onde as palavras precisam denunciar e disfarçar com a ajuda de jogos e ritos o mesmo ódio que a qualquer hora pode explodir na mente de pessoas equilibradas. Como aconteceu na Europa culta e racionalista na segunda guerra mundial.

Será que o Ocidente conseguirá um dia desfazer a judaização do judeu enquanto sinônimo de maldade? A palavra judiar não desvela uma cultura que fundiu maldade-satanás-judaísmo numa cadeia de significações cravada no seu mundo mental e afetivo? No Pessach os judeus não costumavam raptar um menino cristão e assassiná-lo com os mesmo suplícios do Deus-menino-Jesus? Na sexta feira da paixão de Cristo, quando depois dos sermões o povo invadia o bairro judeu para vingar com sangue e fogo o eterno morrer e ressuscitar de Jesus, o que faziam não era tornar real o drama encenado na vila de Sant’Anna? Não foi Santo Agostinho que, a propósito de Jesus e os Judeus, ensinou que estes “coroaram-no de espinhos, aviltaram-no cuspindo-lhe na face, flagelaram-no, transpassaram-no com uma lança” acrescentando que, com “na sua dispersão e sua desgraça são um povo testemunha do demônio e da verdade cristã, subsistem para a salvação da nação cristã, mas não para a própria”. Foi assim que ele criou a doutrina do Povo Testemunha.

Os Judeus deveriam sofrer sem ser destruídos para validar permanentemente a verdade da Igreja. Mas, ao ditar esta razão, aceita, difundida e aprimorada ao longo dos séculos, sem perceber, Agostinho equiparava o suplício dos judeus ao sofrimento do Jesus que eles reviviam em seus corpos submetidos à dor. Agostinho, o grande pensador católico, também desenvolveu outra doutrina que se tornou importante na historia das relações da igreja com os de Israel. Segundo aquela doutrina eles seriam o “Bibliotecário Escravo” carregador das antigas Escrituras para provar que estas caducaram na medida em que o filho mais novo triunfara sobre o mais velho.

Diante de tal imaginário cultural quem sou eu para tentar conversar sobre um conflito que arranca as pessoas de seu equilíbrio racional em qualquer lugar do mundo ocidental e cristão?

Bem que a minha mãe me avisou.

( Rio, entre 2007 a 2008 )

Paulo Blank é psicanalista e escritor.