23.11.10

Noel Rosa e o judeu da prestação

Celebra-se o centenário, em 2010, de um dos grandes gênios brasileiros, o compositor Noel Rosa, que morreu antes de completar 30 anos. Ele foi um cronista atilado de sua época (em que ainda não havia a mania do politicamente correto) e dos costumes cariocas, e falou de tudo e de todos, inclusive dos judeus da prestação, os "klientelchik". O trecho abaixo está no livro Judeus da Leopoldina, edição de 2007 do Museu Judaico do Rio de Janeiro:
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A imagem estereotipada "estigmatiza as diferenças" ao circular como verdade social, no dizer de Roland Barthes. E o "judeu da prestação" tornou-se tão visível no cenário urbano brasileiro, entre as décadas de 1920 e 1950, que o estereótipo volta e meia se repetia, de forma mordaz, em piadas, em caricaturas na imprensa e na música popular. Em São Paulo, o compositor Adoniran Barbosa criou um conhecido personagem, o "judeu da prestação Moisés Rabinovic". No Rio, o compositor Noel Rosa incluiu a figura em sambas satíricos como São Coisas Nossas e Quem dá mais.

Em Quem dá mais, ao traçar o que seria um leilão das maiores riquezas brasileiras -- a mulata, o samba e o violão -- Noel diz:

"Quem dá mais.../Por um violão que toca em falsete/ Que só não tem braço, fundo e cavalete/ Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio/ foi posto no prego por José Bonifácio?/ Vinte mil réis, 21 e 500, 50 mil réis! / Ninguém dá mais de 50 mil réis? / Quem arremata o lote é um judeu, / Quem garante sou eu, / Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...) (* 1)  

Como outros letristas, Noel às vezes recorreria a simplificações, porém nunca teve os judeus como alvos preferenciais. Observador social arguto que circulava com desenvoltura entre Vila Isabel, o centro e os subúrbios, não podia deixar de observar os prestamistas percorrendo as ruas com suas pesadas malas, seus pesados embrulhos, vendendo, vendendo, vendendo... Assim, nada mais natural que incluí-los em São Coisas Nossas:

"...Morena bem bonita lá da roça, / Coisa nossa, coisa nossa. / Baleiro, jornaleiro,/ Motorneiro, condutor e passageiro, / Prestamista e vigarista/ E o bonde que parece uma carroça, / Coisa nossa, muito nossa! (...) 

Em Cordiais Saudações, samba epistolar falando de dívidas, Noel atira para todos os lados e mira também no cobrador judeu:

"...Eu hoje sinto saudades/ daqueles dez mil réis que te emprestei. /Beijinhos no cachorrinho, / Muitos abraços no passarinho/ Um chute na empregada, / Porque já se acabou o meu carinho./A vida cá em casa está terrível /Ando empenhado nas mãos de um judeu/ O meu coração vive amargurado / Pois minha sogra ainda não morreu (tomou veneno, e quem pagou fui eu)..."

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NOTA
1 - "Este verso é um dos dois que valerão a Noel, muitos anos depois de sua morte, a acusação de anti-semita. Mas quem se lembrar do que representou a figura do prestamista em sua infância (e de como judeu era a denominação genérica, ainda que imprópria, daquele tipo de comerciante) sabe o que ele está querendo dizer" (Máximo, João, e Didier, Carlos, Noel Rosa, uma biografia, Editora Unb, pág. 167).