16.5.09

Schylock - um lado humanista de Shakespeare

Não há razão para ver antissemitismo em Shakespeare por causa do personagem Shylock, em O Mercador de Veneza: é o que diz a premiada dramaturga brasileira Miriam Halfim sobre uma questão que há décadas divide os estudiosos. A peça foi encenada, no século XX, tanto nos palcos nazistas, onde Shylock foi caracterizado como um usurário judeu repulsivo, o vilão prototípico, quanto por grupos teatrais que “desconstruiram” o texto com a intenção de fazer o público confrontar seus preconceitos. No cinema, o texto ganhou uma adaptação recente estrelada por Al Pacino (The Merchant of Venice, Inglaterra/Itália/Estados Unidos, 2004).

Pergunta: Que elementos indicam que Shakespeare não condena Schylock?
Miriam Halfim: Minha tese, e sobre isso foi minha dissertação de mestrado, é que o célebre monólogo de Shylock na peça O Mercador de Veneza, no qual ele diz que é um judeu, mas que se o ferem, sangra como todos os homens, se lhe fazem cócegas, ri como todos os homens, etc (Ato III, cena 1) mostra um lado humanista de Shakespeare. O que pode parecer antissemitismo mostra a verdadeira face do personagem como visto pelo genial dramaturgo, que enxerga além do preconceito popular. Um autor que odiasse judeus não escreveria aquele monólogo tão impressionantemente humano e solidário.

Pergunta: O que caracteriza basicamente a personalidade de Schylock?
Miriam Halfim: A personalidade de Shylock é sóbria. Ele diz que pode comerciar com os gentios, mas não sentar-se à mesma mesa. A proibição vinha de fora, sempre foi sabido, e toda a escrita do bardo tem ironia. Uma leitura literal não funciona. Shylock não gosta de festas mundanas, mascaradas, mas na sinagoga, que ele frequenta, há música, toda a liturgia é cantada.

O pai que cuida da filha com zelo cabe na imagem do viúvo preocupado com a honra da casa. A dor de Shylock quando sabe que a filha vendeu o anel que a esposa lhe dera quando ainda solteiro bem mostra que valoriza sentimentos profundos, em contraste com a leveza excessiva do grupo gentio. Existe o Shylock que paira na superfície e deve agradar à platéia e o outro, vivo, abaixo da linearidade, que surge em algumas falas e no magnífico monólogo citado.

Pergunta: Na época de Shakespeare, como era o antissemitismo na Inglaterra?
Miriam Halfim: Havia poucos judeus na Inglaterra de Shakespeare. Oficialmente, todos haviam sido expulsos, mas os editos não valiam para os médicos, por exemplo, que geralmente cuidavam da realeza e eram convidados a ficar. Mesmo sem ver judeus pelas ruas, havia a criação de Christopher Marlowe, um contemporâneo de Shakespeare: ele, sim, descreveu seu judeu com preconceito indubitável em O Judeu de Malta. Ambos colocaram seus personagens na Itália. Já existia a Inquisição e na Inglaterra não se encontrava uma comunidade, mas na Itália havia judeus, e aquele país prosperava. O que causava todo tipo de inveja.

Pergunta: Shakespeare tem outros personagens judeus que ficaram famosos?
Miriam Halfim: Não há mais personagens judeus em Shakespeare. Shylock é o único sobre o qual escreveu. O poeta escrevia sob o mecenato da nobreza e a ela precisava agradar. Em tese, pelo menos. Mas, embora através dos séculos Shylock tenha oscilado entre o monstro e o homem, dependendo da política da época, uma leitura apurada e honesta de O Mercador de Veneza mostra um ser humano rico e muito sofrido. É imperdível.