15.5.10

Memória e Cinzas–Vozes do Silêncio (ed. Perspectiva, org. E. Schweidson)*


Página da HQ "La vida es bella", do artista gráfico argentino Sergio Langer
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* [  por Heliete Vaitsman* - em O Globo, caderno Prosa e Verso, 08/05/2010 ]
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Ao reunir nove ensaístas brasileiros que, partindo de saberes diversos, expõem as marcas que o nazismo deixou no corpo da humanidade, Memória e Cinzas – Vozes do Silêncio produz uma reflexão sobre a transgressão, operada pelo nazismo, de todos os limites do humano. Embora pensem o Holocausto para além da intenção didática, os textos, em seu conjunto, acabam por constituir uma advertência contra fatos e atos que conduzem ao totalitarismo, à violência e, no limite, ao extermínio planejado. O que leva milhões de seres pensantes a se curvar a palavras de ordem que negam a diferença e evocam aquilo que produziu Auschwitz, como se os crimes cometidos há apenas seis décadas fossem ecos tão longínquos que não merecessem mais ser temidos?
            Trata-se aqui de fatos inimagináveis. A fala, oposta às solenidades ocas, ajuda a navegar sobre o legado da fratura insuperável, enquanto fantasmas redivivos atualizam o passado: em 11 de abril último, 65º. aniversário da libertação do campo de concentração de Buchenwald, a extrema-direita húngara – que defende medidas "duras" contra judeus e ciganos, aos quais atribui boa parte dos males do país – conquistou 26 assentos no Parlamento. É a primeira vez que isso ocorre, desde a Segunda Guerra. Retórica similar vem ganhando votos em outros países. Se na primeira metade do século XX o palco das maiores carnificinas foi armado no coração da Europa culta, e não de um dia para o outro, como reagir a isso, agora? Nem é preciso chegar ao exagero dos Protocolos dos Sábios de Sião, até hoje divulgados em países árabes como se verdadeiros fossem. Observemos alguns fatos, sugere a psicanalista Edelyn Schweidson, organizadora do livro.
Fatos como a divulgação insistente, principalmente na França, de uma carta em que Freud se manifestou, em 1930, contrário à criação de um Estado judeu na Palestina (naquele momento, Freud ainda não se exilara em Londres, suas irmãs não haviam sido mortas em campos de extermínio e 50 milhões de pessoas não tinham perecido devido à guerra). Ou como a proclamação de alguns intelectuais sobre o "fim" inevitável de Israel, país que não mereceria existir devido aos seus "crimes inumeráveis" (a marca eterna, a singularidade que recusa o humano a certos grupos?)
Consciência e memória são eixos desse continuum que vem até os dias de hoje, analisado por cinco psicanalistas (além de Schweidson, Fabio Landa, Paulo Blank, Eduardo Vidal e Marylink Kupferberg), dois cientistas políticos (Renato Lessa e Sergio Paulo Rouanet), um doutor em teoria literária (Marcio Seligmann-Silva) e um editor/professor de teoria do teatro (Jacob Guinsburg). À atualidade, indiretamente, também nos remete neste livro um texto de Kafka sobre o idish, a língua dos judeus europeus orientais que o Holocausto quase extinguiu. A extinção não aconteceu. Hoje, não se estigmatiza mais uma "raça", conceito superado, porém bodes expiatórios (muçulmanos, judeus, ciganos, homossexuais) continuam disponíveis.
O Holocausto, ou Shoá, não é considerado um genocídio a mais, é o acontecimento singular, reitera este livro: o nazismo quis destruir um dos fundamentos da civilização ocidental para estabelecer uma sucessão de extermínios. O povo judeu, mas não só ele, devia desaparecer sem deixar vestígios. Tal memória, implacável, está sempre presente, ainda que silenciosa – inclusive no texto pessoal, poético, em que o psicanalista Paulo Blank percorre com a mãe imigrante as trilhas do afeto, "viajando" aos Montes Cárpatos enquanto o bonde carioca sacoleja da Praça 11 à Tijuca. Para romper os vazios de silêncio, é preciso reconhecer as cinzas. Como voltar à humanidade depois delas? Pensando-as, escrevendo-as, negando a negação, priorizando a ética.
Em outro registro, Sergio Paulo Rouanet aborda a problemática religiosa de que o século XXI nasceu pródigo. Não é no mundo sem Deus que tudo é possível; ao contrário, é a fé que relativiza a ética. Rouanet atribui ao fundamentalismo, "a vertente mais maligna" das três religiões monoteístas, alguns dos maiores riscos do futuro próximo. Segundo Freud, cita ele, toda religião tem uma relação ambígua com a violência; Tânatos é banido do grupo religioso na medida em que os crentes ligam-se "por vínculos eróticos dessexualizados" e se voltam com violência contra outras comunidades, diz o ensaísta. "É a fantasia islâmica de volta a um mundo regido pela Sharia, a fantasia judaica da volta a um Israel bíblico, e a fantasia cristã da volta à moralidade dos pais fundadores".
A questão dos testemunhos avulta. Primo Levi, autor de É isto um homem?, clássico sobre o universo dos campos que durante anos o mundo se negou a ler, foi sempre reticente a respeito do testemunho, inclusive o seu próprio. Argumentava que os que ainda tinham voz para dizer o horror eram aqueles que não tinham chegado ao fundo. O testemunho, explica Marcio Seligmann-Silva, não deve ser tratado de modo positivista, pois se vincula à possibilidade da ficção, do perjúrio e da mentira, conforme Derrida. E cada voz reflete uma percepção peculiar.
Então, não basta ler as ruínas como se todas fossem iguais. O texto do psicanalista Fabio Landa nos revela "um sombrio segredo": a existência, no campo de trabalho de Kaltchund (onde se fabricavam munições), do keffer, cercado onde bebês e crianças eram jogados a cães ferozes, cães-lobos, que os trucidavam. Um relato tão terrível que preferiríamos não lê-lo. Quando se quer ir além das ruínas, porém, o conhecimento se faz essencial. "É imprescindível revolver minuciosamente as cinzas, montanhas de cinzas", para ler a História, afirma Landa. Ler para entender, ler para julgar o crime, ler para recusar a disseminação dos ódios.