14.8.08

Good morning, Shanghai!


Acima, fac-símile da primeira página (fundo preto) do texto de abertura da audição inaugural do programa radiofônico em ídish criado por David Markus em Xangai. Foi no dia 17 de novembro de 1941, uma segunda-feira, às 16h40. O título era "Notícias judaicas locais". É a primeira vez que vem a público, gentilmente cedido pela jornalista Sara Markus Gruman, editora do Boletim ASA, que conta abaixo a emocionante história dos judeus europeus que conseguiram fugir para Xangai depois da eclosão da Segunda Guerra. Entre eles estava seu pai, David Markus, que chegou ao Brasil em 1951.

(Por Sara Markus Gruman*)

Notícias locais – Ontem, às 18 horas, uma inauguração festiva em Kungping Road, n. 445, abriu a primeira Casa Borochov no Extremo Oriente. Durante o ato houve uma impressionante manifestação da juventude sionista em Xangai.

Assim começava a primeira audição do único programa radiofônico para a comunidade judaica levado ao ar na cidade chinesa de Xangai. Idioma: ídish. Data: 17 de novembro de 1941.

David, um jovem moreno, alto, magro, bela estampa, 25 anos apenas, criou e dirigia o programa, transmitido às segundas e quintas-feiras pela XMHA, 600 quilociclos, uma subsidiária da americana NBC. Quando a Alemanha nazista invadiu seu país, a Polônia, em 1˚ de setembro de 1939, David cursava a Faculdade de Humanidades de Vilna, Lituânia. Outros judeus da Polônia, como as irmãs Gênia e Mina, Artur e Bóris, por caminhos diversos, fugiram para a Lituânia, país neutro que tinha comunicação aérea e marítima com o Ocidente. Vilna, sua cidade mais importante, recebeu, na avaliação de David, uns seis mil refugiados judeus. Em 15 de junho de 1940, quando os soviéticos ocuparam a Lituânia, aumentou a agonia dos refugiados na busca da fuga.

No final de julho, estudantes e rabinos da ieshivá de Mir refugiados na Lituânia obtiveram do cônsul honorário da Holanda na capital lituana, Kaunas (Kovno), Jan Zwartendijk, papéis que, por meio de um artifício, permitiam supor que seus portadores tinham entrada garantida em Curaçao. De fato, os papéis não tinham valor de visto, mas bastaram para que o Japão, que não emitia vistos de permanência, concedesse vistos de trânsito. Quando a notícia se espalhou, multidões de refugiados correram para Zwartendijk e, em seguida, para os portões do vice-cônsul japonês em Kaunas, Chiune Sugihara.

Avisado de que os soviéticos fechariam todos os consulados até 25 de agosto, Sugihara passou todo o mês de agosto de 1940 assinando vistos de trânsito para judeus poloneses desesperados. Os números mais conservadores giram em torno de pouco mais de mil vistos, havendo quem os tenha inflacionado até a marca de 8 até 10 mil. Pelas contas de David e Artur, por mais esforço que Sugihara fizesse, o máximo que poderia ter assinado era 3 mil, ainda assim uma proeza que lhes permitiu escapar do massacre promovido pelos nazistas na Lituânia no ano seguinte.

Com a apresentação dos vistos de trânsito e alguma sorte, a NKVD, polícia política soviética, já emitia vistos de saída. “As filas eram enormes”, lembra Bóris. “Acho que nunca se saberá por que, de repente, os russos permitiram que algumas pessoas saíssem”. Provavelmente para obter divisas. Comprar no mercado negro os dólares necessários para pagar a viagem com o expresso transiberiano, que levava doze dias de Moscou até o porto de Vladivostok, custou a David um bonito relógio suíço de ouro. [...] De Vladivostok cruzava-se o agitado Mar do Japão em pequenas embarcações, feito sardinhas em lata, para a cidade portuária japonesa de Tsuruga.

De Tsuruga os refugiados se transferiam para Kobe, onde não podiam trabalhar, e o Jewcom, comitê de assistência aos refugiados, constituído de judeus radicados no Japão, dava uma ajuda que, segundo David, se resumia a 30 centavos de dólar por dia, que davam para um pão com geléia e ovo. No caso dele, que na época só comia kasher, o cardápio às vezes permitia uma batata cozida com geléia de morango. Em meados de 1941, quando o prazo dos vistos expirou e a saída do Japão se tornou obrigatória, os refugiados correram para o único lugar que não exigia vistos: a cidade aberta de Xangai.

APOIO DA COMUNIDADE

A presença judaica na China remonta ao século 10. Quando os refugiados chegaram, Xangai já possuía uma comunidade judaica organizada. Como resultado da Guerra do Ópio, em 1841, a Grã Bretanha, vencedora, obrigara o governo imperial chinês a abrir portos ao comércio internacional. A cidade foi dividida em três setores: o chinês, o Internacional (International Settlement), principalmente comercial, e o francês (Concession Française), residencial. A partir de 1843, diferentes ondas de imigrantes judeus se dirigiram àquela metrópole. Os primeiros eram originários do Oriente Médio e fizeram grandes fortunas, como os Sassoon, os Kadoori e os Hardoon. Depois vieram os russos fugindo dos pogroms e das revoluções do início do século 20 e, finalmente, os alemães, austríacos e poloneses, nessa ordem.

Os judeus do Oriente Médio e russos deram grande assistência aos refugiados do nazismo, construindo escolas, hospitais e clubes. Os judeus russos chegaram à China apenas com a roupa do corpo, mas à custa de muito trabalho e espírito empreendedor alcançaram tal sucesso que construíram as suas próprias instituições e, no período entre guerras, coletavam dinheiro para ser enviado ao ishuv na então Palestina. Em Xangai, moravam na concessão francesa e se dedicavam principalmente ao comércio de importação e exportação. “Foram os judeus russos que, em maio de 1941, organizaram o Eastjewcom, o comitê, onde eu trabalhei, de apoio material e logístico aos refugiados em Xangai”, conta Gênia.

Para Hongkew (lê-se Hon-quiú) foram os judeus alemães e austríacos na década de 1930.O bairro fora palco de lutas em 1937, na guerra entre China e Japão, da qual resultou a ocupação japonesa de Xangai. Boa parte fora queimada e era nesse cenário semi-devastado e infecto que viviam a população chinesa miserável e os cerca de 16 mil judeus alemães e austríacos. Lá, a quase totalidade dos refugiados morava precariamente nos grandes galpões  cem, duzentas pessoas amontoadas, convivendo com ratos e baratas. “Mesmo assim”, observa Gênia, “por serem cultos, os alemães tinham teatro e um time de futebol, davam concertos e as crianças freqüentavam uma escola sustentada pelos sefaradim. Eram judeus alemães a maioria dos médicos do hospital de Hongkew.”

Os judeus poloneses, últimos a chegar a Xangai, moravam na concessão francesa e tinham relacionamento muito mais estreito com os russos do que com os alemães devido, segundo Artur, à afinidade lingüística. Após a chegada dos refugiados da Polônia, as atividades editoriais se intensificaram e diversos escritores se dedicaram à publicação e divulgação da literatura ídish moderna. Russos e poloneses organizavam programas artísticos e literários em ídish no Shanghai Jewish Club (SJC), fundado por imigrantes russos provavelmente na década de 1920, na concessão francesa.

No início de 1942, David e um grupo de jornalistas de Varsóvia, entre os quais Elbaum e Svislotzky, organizaram espetáculos musicais e humorísticos que eram apresentados no SJC. Diversos nomes do meio literário, jornalístico, artístico e político em Xangai freqüentaram o programa de David na XMHA e se destacaram anos depois no cenário judaico em Israel e outros países. Um deles foi Josef Tukachinsky, que após a guerra fez aliá e seguiu carreira diplomática com o nome de Iossef Tekoa. Como embaixador, no início dos anos 1960, o casal Ruth e Iossef Tekoa ocupou com os filhos a casa − no terreno existe hoje um edifício − que servia de residência oficial de Israel no Brasil, na Rua das Laranjeiras, em frente à Hebraica.

O movimento sionista em Xangai começou no alvorecer do século 20 entre os sefaradim. Em 1945, a Organização Sionista de Xangai – ZOS (Zionist Organisation, Shanghai) contava com 1815 membros, fora outras organizações sionistas como Wizo, Poalei Tsion, Betar, Mizrahi e Brit Noar Tsioni. Já os bundistas eram “cem ou mais. Eu tinha ligação com eles porque meu irmão era um grande líder do Bund [principal partido operário judeu da Europa Oriental, anti-sionista] e chegou a ficar preso em Lubianka, Moscou”, revela Bóris. Havia escolas seculares e ieshivot, estas totalizando cerca de quatrocentos estudantes. “Os da Mir viviam muito bem, com fundos do exterior.” O ORT foi instalado em Xangai em setembro de 1941, e até julho de 1945 havia 876 matriculados em seus cursos.

“No dia 7 de dezembro de 1941, acordei com tiros de canhão. Os japoneses estavam começando a atacar o settlement, cujo porto abrigava navios ingleses e americanos. Depois foi se espalhando de boca em boca a notícia do ataque a Pearl Harbor”, lembra Bóris. Com a eclosão da guerra no Pacífico e a ocupação das áreas internacionais, os japoneses começaram a fechar o cerco aos refugiados e calaram a única voz ídish jamais levada ao ar por uma emissora de Xangai. O programa de David não chegara a completar um mês de existência.

Quando o coronel da Gestapo Josef Meisinger, o “açougueiro do Gueto de Varsóvia”, desembarcou em Xangai, em 1942, para convencer seu aliado no Eixo a aniquilar os cerca de 20 mil judeus que ali sobreviviam, o Japão resistiu, pois, de acordo com David, a sua política oficial não era anti-semita. Contudo, em 12 de fevereiro de 1943, não mais resistindo às pressões da Alemanha, as forças de ocupação emitiram uma proclamação (proclamation) obrigando todos os refugiados apátridas (stateless) que tivessem chegado depois de 1937 a se transferir para a “Designated Area”, um eufemismo para gueto, dentro de Hongkew. Cinco judeus poloneses se insurgiram e foram executados; outros, presos. “Cerca de 25 morreram de tifo devido às más condições da prisão”, lembra Artur.

Em Hongkew, David passou a dividir um quartinho com mais cinco ou seis refugiados nas dependências do Exército da Salvação, mudando-se mais tarde para Tong Shan Road, seu endereço até o fim da guerra. As condições sanitárias eram extremamente precárias e faltava comida. “Durante cinco anos eu não vi açúcar, e o arroz estava racionado. Quem tivesse muitos dólares podia comer. Mas quem tinha?”, exclama Gênia. “O que nos salvou foi a banha de porco, que os chineses desprezavam. Nós podíamos comprá-la muito barato e, com um pouco de pão, fazíamos um banquete. Havia muita avitaminose, além de tifo e, devido à falta de higiene, disenteria. Eu mesma fui quatro vezes internada no hospital com disenteria. O comitê sefaradi, constituído daquelas famílias milionárias radicadas ali havia um século, colaborou muito para tornar o gueto de Hongkew habitável, mas longe de decente, pois não havia banheiros.” [...]

De acordo com a Emigrant Residents Union, em novembro de 1944 viviam confinados no gueto, numa área de aproximadamente 2,5km2, 14.245 refugiados, sendo 8.114 da Alemanha, 3.942 da Áustria e 1.248 da Polônia (SEGUE NOS POSTS ABAIXO)

* Escrevo em lembrança de meu pai e como uma homenagem a Zwartendijk e a Sugihara, cujos gestos humanitários salvaram tantas vidas do genocídio nazista, me permitindo contar esta história (a íntegra deste artigo foi publicado no número 72 do boletim ASA, set-out de 2001)