23.10.08

Samuel Rawet, o erudito suburbano de escrita extremada


Acima, passaporte com que Sura Rawet chegou ao Brasil na companhia de três filhos

Se Samuel Rawet tivesse vivido na França ou na Itália, haveria placas de bronze e ônibus de turistas literários à porta das casas de sua infância e juventude no subúrbio carioca de Olaria. Mas o “writer’s writer” de texto contundente e apaixonante, o erudito leitor de Buber e Spinoza, é por ali um ilustre desconhecido. Aliás, desconhecido – e, mais que isso, incompreendido e rejeitado -- ele também foi, durante muitos anos, pela comunidade judaica.

Como o Museu Judaico fará uma mesa-redonda sobre sua obra [dia 28, terça-feira, às 18 horas], aproveito para sintetizar aqui alguns aspectos da trajetória de Rawet, de quem foram lançados em 2008 os Ensaios Reunidos (editora Civilização Brasileira, organização de Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus) e Samuel Rawet: fortuna crítica em jornais e revistas (editora Caetés, organização de Francisco Venceslau dos Santos). O livro da Caetés foi selecionado pelo Programa Petrobras Cultural na área de Preservação e Memória, que difunde conteúdos e acervos de interesse da memória das artes no Brasil.

DIVISOR DE ÁGUAS

Ao chegar de Klimontow, Polônia, em julho de 1936, em companhia da mãe, de um irmão e uma irmã, o menino anotado como Szmil Urys no passaporte materno tinha sete anos e só falava idish, língua na qual se alfabetizara. O pai começara no Brasil como clientelchik – vendedor a prestação de porta em porta – e depois teve lojas de móveis; o menino, leitor ávido, cresceu detestando tudo o que se referisse a comércio e a dinheiro.

Rawet estreou em 1950 -- com crônicas, críticas teatrais, editoriais e contos -- na revista O Espelho, do Grêmio Cultural e Recreativo Stefan Zweig, que funcionava no Centro Israelita dos Subúrbios da Leopoldina. As ruas onde a família viveu, em casas pequenas, alugadas, continuam empoeiradas e quentes, com seus nomes sonoros (Lígia, Leonídia, Andorinhas). As residências também continuam ali, mas é outro o perfil demográfico. A sinagoga da rua Juvenal Galeno, em frente à casa de vila onde os Rawet moraram, ainda funciona aos sábados, mantida pelos antigos moradores, em sua maioria filhos de imigrantes do leste europeu.

Se a vida comunitária e o som das rezas marcaram Rawet, também o marcou o estranhamento do universo brasileiro, e o apelido incômodo que deu título a Gringuinho, relato de exclusão que integra Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (Editora Objetiva, seleção de Ítalo Moriconi). Gringuinho foi publicado pela primeira vez em Contos do Imigrante, de 1956. Ano que, recorda o romancista Esdras Nascimento, leitor apaixonado de Rawet, foi apontado como um divisor de águas da literatura brasileira por causa da publicação de duas obras: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Contos do Imigrante.

Rosa e Rawet, juntos: a comparação não era pouca coisa para um escritor de 26 anos que se formara em Engenharia e cuja língua materna parecia fadada à extinção depois do Holocausto!

Rawet desejava ser brasileiro, mas não um brasileiro aburguesado, convencional, e sim um carioca livre das injunções familiares, dono e senhor de ruas, becos, botequins e sexo pago na Cinelândia. Repudiava a erudição para exaltar uma simplicidade que, de fato, nunca teve. “Sou fundamentalmente suburbano. Eu aprendi português nas ruas, apanhando e falando errado, e acho essa a melhor pedagogia. Eu aprendi tudo na rua” -- disse em entrevista ao escritor Flávio Moreira da Costa, jornal Correio da Manhã, 18/06/1972.

Por algum tempo, foi fiel à Lei do clã. Aluno brilhante, fez carreira bem sucedida como integrante da equipe que construiu Brasília. Foi o principal calculista do Congresso Nacional, tendo participado também de importantes projetos na França e em Israel. Até que um dia largou tudo. Segundo relatou numa entrevista, sua gota d’água existencial foi a visão, no final de uma escadaria da futura capital, de Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Joaquim Cardozo: ele, outsider de ego fraturado, não queria mais caber no quadro de senhores tão contentes consigo mesmos...

Nunca usou seus vastos recursos literários para idealizar o passado. Para ele, o shtetl ancestral já embutia a ingratidão, a perfídia, os males do mundo: “Ah, as neves da minha infância, ah, as doçuras das varadas que levei porque chutei uma bola na rua. Foram contar ao velho barbudo (já então havia delatores), e o homem espumou na sala do prédio da sinagoga...”, recorda, no ensaio Devaneios de um solitário aprendiz da ironia (1970), em que fala da teoria da consciência unificada no mesmo parágrafo em que lembra a humilhação e o gozo de saber-se homossexual.

Proclamou seu rompimento com o mundo judaico que conhecera (e não com o judaísmo em geral, como alguns entenderam erroneamente), ao publicar, em 1977, o ensaio Kafka e a mineralidade judaica ou a tonga da mironga do kabuletê. “Estou farto de pathos, farto de ahhs!, ohhhs!, uhhhs!, arreganhos de dentes, deboches (....)”, escreveu então. Anunciou que não queria mais saber de amigos judeus, comida judaica, negócios imobiliários judaicos...

Deus não existia, Freud era uma fraude, escreveu um dia. O que existia era a escrita vertiginosa, o mergulho sem rede, em tantos pontos similares aos de outros intelectuais atormentados. A imaginação delirante venceu aos poucos a sanidade. Foi um Samuel Rawet solitário que morreu em 1984, em Brasília. Mas não estava inteiramente isolado, pois os amigos escritores se preocupavam com ele e o acolhiam.

Se o poeta beat Allen Ginsberg, seu contemporâneo, homenageou a mãe, morta num hospício, com o Kaddish canônico, foi aos israelenses vivos que Rawet -- igualmente marcado pela doença mental da mãe -- dirigiu seu Kadish – Oração pelos vivos das Olimpíadas de Munique. As flores de retórica, as preces e o pranto são inúteis para os mortos, escreveu então, novamente “jovem”, novamente sionista, eternamente inquieto no difícil espaço entre pertencimentos díspares.