17.8.09

Padre Vieira e os judeus (por Arnaldo Niskier*)


[ O acadêmico e professor Arnaldo Niskier, autor do artigo abaixo, faz conferência no Museu Judaico quarta-feira, 19 de agosto, 18 horas, acerca de suas pesquisas, que resultaram em livro, sobre a relação do padre Antonio Vieira, figura emblemática da cultura luso-brasileira, com os judeus ]
"O padre Antônio Vieira, maior representante da eloquência sacra em nossa literatura, manteve em seus quase 90 anos de vida uma relação de intensa simpatia com os judeus. Sua família, isenta de preconceitos, registrou diversos casamentos considerados mistos, na ocasião, como o da irmã Leonarda, casada com Simão Álvares de Lapenha, com quem teve filhos; Maria de Azevedo casou com Jerônimo Sodré Pereira; Catarina Ravasco de Azevedo com Rui de Carvalho Pinheiro e Inácia de Azevedo com Fernão Vaz da Costa. Todos de sangue semita.

A Companhia de Jesus era fortemente influenciada pela chamada “gente de nação”, o que levou Vieira a uma grande identificação com o Velho Testamento e à defesa candente dos cristãos-novos, perseguidos pelo Santo Ofício e a Ordem Dominicana. Acabaria, ele mesmo, sendo vítima da Inquisição. Foi pesquisado se tinha sangue impuro, “pois só um judeu defenderia tão ardorosamente outros judeus.” Nada encontraram, era mesmo idealismo do pregador messiânico, que, chegando à condição de confidente de D. João IV, sugeriu-lhe retomar Pernambuco dos holandeses, mas não pela guerra, e sim por uma compra com o dinheiro emprestado pelos judeus, desde que lhes fosse permitida a livre entrada no país.

É dessa época a construção da primeira sinagoga brasileira – Kahal Zur Israel (Rochedo de Israel), que começou a ser pensada em 1630, com a chegada dos primeiros israelitas oriundos da Holanda a Recife. Eles queriam uma sinagoga e uma escola, da mesma forma que o padre José de Anchieta, um século antes, falava em construir uma escola ao lado de cada igreja. São semelhanças que devem ser lembradas.

Em 1642 pregou Vieira pela primeira vez em Lisboa. Havia necessidade de obter recursos financeiros para a aquisição de navios e armamentos, além da contratação de mercenários, como era costume na época. Sugeriu ao monarca a cooperação dos judeus – cristãos-novos ou não – lançando o opúsculo Razões apontadas a el-rei D. João IV a favor dos cristãos-novos para se lhes haver de perdoar a confiscação de seus bens, que entrarem no comércio deste reino.

Pode-se compreender o alcance da sugestão pelo que afirma Mendes dos Remédios, no seu clássico Os Judeus em Portugal: “Defesa pronta, desassombrada, eloqüente, vigorosa, linguagem forte, lógica incisiva e fulminante. Esse escrito estalou como um trovão ... O que não devia causar menos espanto, apreensão e temores era o saber-se que o paladino dos cristãos-novos e autor daquela Proposta era um jesuíta, homem então na pujança da vida e do talento, bem aceito na corte, adorado nos meios aristocráticos e devotos da capital, intimorato, eloqüente, generoso, e cujo saber e habilidade não conheciam limites – o padre Antônio Vieira.”

Os inimigos eram os castelhanos e os holandeses, estes já instalados no Nordeste brasileiro, especialmente em Pernambuco. O pragmatismo de Vieira pode ser medido por essa afirmação: “Favorecer aos homens de nação ou admiti-los neste Reino, na forma que se propõe, não é contra lei alguma, divina ou humana, antes é muito conforme aos sagrados cânones... O judaísmo não passa de homens da mesma nação.”

Com o seu apoio, organizou-se a Companhia de Comércio para o Brasil, fundamental para a reconquista de Pernambuco, apesar da forte oposição encontrada. Mas Vieira era muito firme nas suas convicções: “O Papa, em Roma, admitia judeus públicos (os que viviam na lei de Moisés) e sinagogas, por que se não havia de consentir em Portugal? O modo de processar na Inquisição os apóstatas era iníquo.” Por isso, a ele se atribui, quando estava em Roma, a autoria do Memorial a favor da gente de nação hebréia.

Recorremos à renomada historiadora Anita Novinsky, da USP que se manifestou elogiosamente ao artigo da Folha com o título “Rochedo de Israel”, publicado em 30/03/2000 e que, no livro Inquisição – Inventários de bens confiscados a cristãos-novos, faz um comentário bastante elucidativo: “Durante o reinado de D. João IV, quando atrás do monarca soprava a voz do padre Antônio Vieira, a Inquisição se viu seriamente ameaçada e privada de seus lucros. Os desentendimentos entre a Coroa e a Inquisição alcançaram então seus extremos... O padre Vieira continuou a minar o edifício inquisitorial, que chegou mesmo a trepidar em torno dos anos de 1674 a 1681.”

Quando Portugal retomou a região, com o reforço da frota de 36 galeões armados, Recife ficou em mãos da Companhia do Comércio, tornada viável pela inteligência e coragem de Vieira, com a ajuda de cidadãos hebreus de Lisboa, Hamburgo e Amsterdam.

Com o recrudescimento das ações do tribunal do Santo Ofício, os judeus de Pernambuco, que tinham sido liderados pelo rabino português Isaac Aboab da Fonseca, de estilo messiânico semelhante ao de Vieira, seu contemporâneo, novamente se espalharam pelo mundo. Alguns deles, em 1654, foram para a cidade de Nova Amsterdam, colônia inglesa na América do Norte, onde ajudaram a consolidar o que viria a ser a grande cidade de Nova Iorque. Os judeus de todas as partes jamais esquecerão o que para eles representou a ação abençoada do padre Antônio Vieira".
* Arnaldo Niskier foi presidente da Academia Brasileira de Letras (98-99) e Secretário Estadual de Ciência e Tecnologia (68-71) e Educação e Cultura (79-83) do Rio de Janeiro.