22.12.09

Tia Pepe - a que nunca falou, mas sempre sorriu (e dançou)

Por falar em memória, vejam como o texto memorialístico abaixo, "íntimo", também remete ao coletivo. A autora é a gaúcha Clélia Estill, fonoaudióloga radicada no Rio, ex-presidente da Associação Nacional de Dislexia. Ela recupera com emoção o universo da família materna, os Federbusch, imigrantes que se fixaram na localidade de Barão Hirsch depois da Primeira Guerra.
Tia Pepe mais queria saber escrever do que falar, eu acho. Sempre que eu ia à casa da Vó, aos domingos, ela me fazia sinais de que queria ver os meus cadernos de aula – eu tinha sete anos e sabia mais coisas do que ela, pensava. Mas a ensinei a escrever e falar as vogais – todas!

Tia Pepe nasceu surda, muito surda, tão surda que nunca ouviu um som na vida, mas dançava como ninguém, um espanto para nós, crianças ouvintes, dançantes, falantes, mas não tão pensantes ainda. Eu era a única menina da família naqueles tempos. Mal acabava o almoço, ela me levava para o quarto dela, que era da minha avó Amália também. Começava a me mostrar tesouros – cremes e perfumes, bijuterias novas e outras já vistas, roupas e camisolas. E fazia seu gesto de beleza, um biquinho com a boca, ou todos os dedos juntos colados aos lábios, e explodia mãos e lábios ao mesmo tempo e com os olhos perguntava – não são bonitos?

O quarto delas – vó e tia – cheirava a perfume e tinta de cabelo. Eu não gostava do cheiro, mas me fascinava com as coisas que ela ia tirando de dentro de velhas caixas, algumas embrulhadas em papéis amarelados, outras envoltas em papéis de seda que protegiam as roupas novas da tia Pepe. Ela era muito vaidosa, mostrava com orgulho o corpo, que era mesmo bem bonito, e gostava de usar vestidos justos modelando-o.

Nunca falou, a tia Pepe; mas sempre sorriu.

Com certeza foi a pessoa mais em paz com a vida que conheci, apesar da triste história de sua vida de criança – história que conheci aos poucos, pois minha mãe não gostava de falar no passado. O pai da tia Pepe, meu avô Felipe Federbusch, veio para o Brasil, lá pelos anos 1920, de uma aldeia na Polônia, Borislav [hoje Ucrânia] trazendo a família: Vó Amália e os filhos, Jacob, Abrahão, Menach (tio Max)e Tonia (minha mãe).

Tia Pepe, com mais ou menos seis anos, não pôde vir junto com a família porque era “deficiente” e o governo brasileiro só aceitava imigrantes que pudessem responder por sua produção e sustento. Foi uma “escolha de Sofia”. Ou o avô salvava a maior parte da família, enquanto tentava provar que poderia sustentar a filha deficiente quando chegasse ao Brasil, ou ficava na miséria da Polônia e morreriam todos em algum dos “pogroms” que volta e meia dizimavam as aldeias judias.

A menininha ficou com uma família que viria mais tarde para o Brasil. Tia Pepe viu seus pais e irmãos partirem deixando-a para trás. Não sei nem imaginar o que devem ter sofrido todos eles. Se ficar alguns dias sem ver os filhos e netos é tão difícil para mim, imagino o horror com que todos viveram aquela separação, tão indefinida quanto ao tempo de reencontro...

Mas tia Pepe não combina com estes pensamentos – ela não falava, mas sempre sorria. Um ano depois da chegada ao Brasil meu avô provou ao governo que poderia sustentar a filha sem dar despesas ao país que os “abrigava”... Conta–se que a menina veio com uma família que ficaria na Argentina. Dali ela veio para o Brasil na companhia de desconhecidos, que a trouxeram até o interior do Rio Grande do Sul, onde meus avós moravam, na localidade de “Barão Hirsch” [em 1891, o barão judeu Maurice Hirsch fundou a Jewish Colonization Association (ICA) com o objetivo de retirar os judeus da Europa Oriental e assentá-los como agricultores].

Então a menina encontrou seus pais e irmãos e tratou de ser feliz. Aprendeu a cozinhar com a mãe e a costurar não sei com quem. Costurava tão bem que foi a costura de alfaiate que a sustentou até o final de sua vida. Quando muito jovem, começou a trabalhar numa alfaiataria, uma oficina de costura de roupas masculinas, ternos forrados de seda e calças com costuras muito bem acabadas. Tia Pepe trabalhou até se aposentar. Primeiro na alfaiataria e mais tarde na fábrica de bolsas do tio Max.

Só conheci a tia Pepe adulta. Na verdade nem sei se meus tios eram tão velhos como eu pensava – eu e Mario, meu irmão, éramos as únicas crianças da família, e pensávamos que todos eram velhos. Mas, pensando bem, os tios deveriam ter entre 20 a 25 anos quando eu nasci, em 1940.

A dança da tia Pepe era um sucesso – o tio Jacob tinha uma coleção de rádios e a casa da Vó Amália ficava num sobrado com chão de tábuas corridas. Quando o rádio tocava, o chão vibrava, e era com a vibração do assoalho que ela percebia o ritmo, mas não a melodia da música, e dançava conosco. Lembro que eles tinham muitos amigos surdos, que ficavam mudos porque não ouviam, e recebiam muitas visitas aos domingos.

“Eles” é porque bem mais tarde nasceu, já brasileiro, meu tio Waldemar, que também era surdo. Só que tio Waldemar tinha um resto de audição e aprendeu a falar (mais tarde eles fundaram uma Associação de Surdos e Mudos e tio Waldemar deu até uma entrevista no rádio).

Tia Pepe e Vó Amália faziam biscoitos enroladinhos de amendoim e guardavam numa lata enorme. Numa outra lata, também enorme, ficavam os “pletsales”, biscoitos com canela e açúcar, em forma de meia-lua. Aos domingos, no meio da tarde, junto com o chá, ela trazia aquelas latonas, a gente enfiava a mão lá dentro e trazia a mão cheia dos mais cheirosos e deliciosos biscoitos de amendoim. Uma coisa!

Mas bom mesmo era a expressão de alegria com que ela nos via comer as delícias que preparava. Às vezes nos dava os tais biscoitos escondidos, porque, claro, nossa mãe não ia deixar a gente se empanturrar de doces – como é que poderíamos sobreviver sem um jantar?

Assim o tempo foi passando e tia Pepe não casou, mas acho que namorou um dos amigos da turma dos bailes. Ela tinha uma amiga, chamada Rosa, que se casou e teve filhos; outros da turma também se casaram, tiveram filhos, e a vida foi tocando.

Casei, tive filhos e vim morar no Rio de Janeiro. Um dia, tio Max me telefonou de Porto Alegre e pela primeira vez me pediu “um favor”. Mal sabia ele que o tal favor viria a ser uma grande alegria para todos nós. É que tia Pepe tinha vindo visitar uns amigos no Rio: viera de ônibus e ele nem sabia se ela tinha chegado bem, pois os amigos também eram surdos e não sabiam escrever – mas ele tinha o endereço.

Então lá fomos nós, meu marido Denis e eu, procurar a tia Pepe em uma ruazinha sem asfalto no subúrbio, em Cascadura. Encontramos tia Pepe numa casa pobrezinha, mas feliz como sempre. Mais feliz ela ficou quando a convidamos a passar uns dias conosco, em nossa casa de Jacarepaguá. Ela aceitou, mas, como era do seu feitio, trouxe a filhinha do casal para passear em Jacarepaguá. Não esqueço a expressão de deslumbramento quando ela viu a quantidade de árvores e a piscina de nossa casa. A menininha dormiu no quarto da Flavia e Denise, e tudo era festa naqueles dias. Fomos ao Corcovado, à praia da Barra, a Copacabana, ao Jardim Botânico.

Em compensação ela fez “borsch”, sopa de beterrabas e batata cozida, que era o que mais havia para comer na Polônia. Fez também caldo de galinha, bolinhos e biscoitinhos de amendoim. Bordou uma tapeçaria, aquele quadro com um cavalo, que faço questão de manter na parede, para que a gente se lembre do exemplo de vida que foi a tia Pepe.

Muito tempo passou – tia Pepe e todos os tios morreram, meus filhos cresceram, eu virei avó, trabalhando cada vez mais em fonoaudiologia e psicopedagogia. Um dia foi a um Congresso no INES – Instituto Nacional de Educação de Surdos. Era um congresso internacional e havia tradutores de Inglês/Português; Português/Inglês; e língua brasileira de sinais – LIBRAS. Fiquei tão comovida vendo aquela linguagem, agora considerada uma língua oficial, que depois das palestras fui cumprimentar a jovem tradutora em LIBRA.

Comecei contando a ela sobre meus tios e ela quis saber o nome deles. “Ora!", disse eu, "você não vai conhecer, eles viviam lá em Porto Alegre e já morreram faz tempo”.

“Não me diga que seus tios são a Pepa e o Waldemar!”, disse ela, com muitas lágrimas nos olhos. “Você é a Clélia, nunca esqueci dos dias que passei em sua casa, e como Flavia e a Denise eram lindas e me deixaram dormir no quarto delas”.

A tradutora era a filha do casal de surdos-mudos, que aprendeu a traduzir a vida para seus pais e naquele momento traduziu para mim o sentido das escolhas - o que se escolhe pode custar a ser entendido, mas um dia explode aos nossos olhos como um clarão de luz.

Não por acaso fui me encaminhando ao trabalho com as pessoas ditas deficientes, hoje consideradas especiais. Agora, quando todos são chamados a conviver com as diferenças, venho a descobrir o que a família Federbusch já havia me ensinado: “Somos todos especiais, somos todos incompletos e convivendo vamos nos completando uns aos outros”. Tia Pepe nunca viveu nem se sentiu como uma deficiente em nossa família, por isto trabalhou, compartilhou o que tinha, viajou, trazendo alegria aonde passava. E todos aprendemos naturalmente a nos comunicar com ela numa outra forma de linguagem – éramos bilíngües e nem sabíamos!