24.10.09

Aspectos judaicos de Clarice Lispector


Nascida Chaia Pinkhasovna na aldeia ucraniana de Chechelnik, Clarice Lispector (1920-1977) sempre desafiou definições. Dizia-se escritora amadora (“pois só escrevo quando tenho vontade”), mas se sentia morta quando parava de escrever. O texto grita, às vezes assusta, a mulher sussurra. “Estou falando do meu túmulo” – diz, a voz quase inaudível, melancólica, poucos meses antes de falecer, em entrevista ao jornalista Julio Lerner, referindo-se ao fato de ter colocado ponto final numa obra. (http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok)

Dizia também que escrevia de forma simples. De sua vida em novelo, porém, pode-se dizer quase tudo, menos que foi simples. O escritor norte-americano Benjamin Moser, 33 anos, que viveu no Brasil, desenrolou a história com minúcias em Why This World,  publicado com críticas elogiosas nos EUA e que chega aqui em novembro, pela Cosac Naify, como Clarice, uma Biografia.

A conjuntura que trouxe a família Lispector ao Brasil, em 1921, foi trágica – a mãe fora estuprada por soldados russos e contraiu sífilis. Clarice nasceu devido à crença, popular na Ucrânia, de que a gravidez neutralizava a doença. A família se estabeleceu primeiro em Maceió, depois em Recife, de onde a escritora saiu para estudar Direito no Rio. Moser, a quem entrevistamos, por e-mail, sobre aspectos judaicos da obra de Clarice, enfatiza a importância da sua origem e a insere num quadro de catástrofe histórica e deslocamento que gera trauma, loucura e, entre os judeus, o "povo do Livro" (para o qual o mundo é "salvo" pela palavra), uma escrita que ultrapassa fronteiras.

Pergunta: A crítica brasileira não deu maior importância à “judeidade” de Clarice e ela mesma evitou referências abertas à tradição judaica em sua obra. A tradução do seu livro vai abrir nova senda nos estudos claricianos? Vai inseri-la num grupo em que entram outros “judeus de alma atormentada”, a exemplo de um Bruno Schulz?
Moser: Isso faz parte de minha ambição para o livro. Embora já houvesse certos críticos que se interessaram pela 'questão judaica' na obra da Clarice, há um outro lado, muito forte, que insiste na sua 'brasilidade', como se fosse preciso escolher entre ser judia e ser brasileira. Isto vem, talvez, de certo 'instinto de nacionalidade' brasileira, na frase de Machado de Assis, mas também porque ela justamente não é, nos seus escritos, explicitamente judia. Mas este lado também é muito judaico. Muitos dos grandes escritores judeus não falam explicitamente, ou só raras vezes, do judaísmo. Pense em Proust ou em Kafka.
           Os judeus, sobretudo os que, como ela, têm sofrido perseguições e exílio, muitas vezes se refugiam em alegorias e em símbolos, e essa experiência histórica lhes dá as mesmas preocupações filosóficas e religiosas: por que Deus insiste, cada vez, em abandonar o chamado 'povo eleito' de maneira tão brutal?

Pergunta: Há alguma explicação que Clarice tenha dado para o nome Macabéa, a personagem nordestina de A Hora da Estrela, referência aparente à trajetória dos macabeus?
Moser: O nome foi dado de propósito, me confirmou sua falecida irmã, dona Tânia [Kaufman]. Acho que uma das glórias daquele livro é a maneira genial com que Clarice reúne tantos aspetos de sua vida e de sua personalidade em pouquíssimas páginas: é explicitamente brasileiro e explicitamente judeu. Aliás, quando se diz que Clarice raramente mencionou o judaísmo em sua obra, é também verdade que ela raramente fala do Brasil, ou pelo menos não no sentido 'folclórico', sobretudo nos romances.
Mas o que acho que seja a referência mais clara aos macabeus é a resistência de Macabéa. Não uma resistência ponderada de uma família aristocrática, como foi o caso dos macabeus, mas a simples insistência em existir.

Pergunta: Seu livro insere Clarice na tradição judaica da “briga” com Deus, algo só possível para os íntimos... Há outras escritoras judias que tenham seguido essa tradição, em geral masculina?
Moser: Não acho que seja uma tradição em geral masculina. Acho que é o resultado natural de quem tem uma certa vocação religiosa ou, como você diz, intimidade com um Deus que então o castiga de maneira terrível, como foi o caso dos judeus no século XX. Sobretudo na região de onde veio Clarice.

Pergunta: Quem são as influências de Clarice nesse ponto? Ou ela é intuitiva? Li um comentário da poeta norte-americana Elisabeth Bishop, dizendo-se impressionada por Clarice não ser uma “leitora”, não demonstrar influências.
Moser: Elizabeth Bishop não ficou 'impressionada' exatamente, ela está dizendo que Clarice era praticamente analfabeta, o que estava longe de ser o caso - mas isso fazia parte da depressão da própria Bishop, em relação a tudo, a começar por sua relação com Lota de Macedo Soares, depois se estendendo ao próprio país da Lota, que no início ela tinha adorado... Falava mal de tudo, mas respeitou Clarice, uma raríssima exceção no panorama da cultura brasileira. Chegou até a traduzir Clarice para o inglês.
            A mentalidade judaica que Clarice demonstra provém de uma coincidência de circunstâncias históricas - a perseguição e o exílio de que já falei - que quando combinada com um gênio expressivo produziu resultados que às vezes se parecem com outros escritores judeus. Mas isso não é a mesma coisa que ter 'influências'. Claro que ela leu muito, gostou ou não gostou, mas a Clarice é puramente original.

Pergunta: O desconsolo de Clarice se explica pelo trauma infantil que você expõe agora pela primeira vez? Como ela teria se sentido na Europa durante o Holocausto, bem ao lado da tragédia dos judeus mas casada com um diplomata e imersa na vida da elite brasileira?
Moser: De acordo com uma crença que ainda hoje existe na Ucrânia, a gravidez podia curar uma mulher de uma doença venérea, como a que a mãe de Clarice contraiu quando foi atacada nos terríveis pogroms que acompanharam o final da Primeira Guerra Mundial e a Revolução bolchevique. Foi uma das dezenas de milhares de mulheres judias atacadas. E, numa tentativa desesperada para curar a mãe, os pais de Clarice decidiram que se ela ficasse grávida, curaria a doença. Uma coisa tão perigosa que quase foi um suicídio. Mas eles eram de uma região muito primitiva e não sabiam disso. A mãe engravidou, e Clarice foi o resultado. Sua sobrevivência foi um milagre. Mas não cura a mãe, que morre quando ela tem 9 anos. E ela vai carregar sempre o peso dessa culpa.
          A violência contra os judeus após a Primeira Guerra foi quase totalmente esquecida porque o que veio depois, na Segunda Guerra, foi pior. Na verdade, só pior na amplidão, na matemática da morte. Mas acho que Clarice nada sabia quando chegou à Europa. Chegou de um Brasil ainda sob a censura do Estado Novo, onde essas coisas não foram publicadas. Os judeus sabiam que a situação estava muito ruim na Europa, mas acho que ninguém no Brasil realmente suspeitava até que ponto. E não está claro quando ela fica sabendo. Acho que a tragédia era dolorida demais. Nesse receio de falar do desastre ela não era a única.

Pergunta: Além da tragédia da mãe, a figura do pai marcou Clarice de que modo? Ele é o "mensch" de um dos contos dela? A palavra, tão intraduzível, evoca outros fatos, outros personagens?
Moser: Dona Tania falou que ele era "o homem de melhor caráter que já conheci". Todos que o conheceram concordam. Foi ele quem salvou as filhas depois da morte da mãe. Ele, um homem quase sem talento para o comércio, que lutou a vida inteira, dia após dia, para se sustentar, conseguiu educar as filhas, dar-lhes um futuro melhor. Foi um esforço quase sobre-humano. Quando morre, muito jovem, Clarice tem 20 anos. Seus sacrifícios não foram em vão. Uma das filhas iria colocar o nome do pobre mascate entre os grandes nomes do Brasil. Mas Pedro Lispector não viveria para ver.

Pergunta: Clarice chegou a pensar, alguma vez, em educar os filhos como judeus? Ou era um legado que não devia ser transmitido?
Moser: Ambos os filhos de Clarice são judeus ainda hoje. Não tiveram educação judaica, não porque Clarice não quisesse transmitir o legado, mas porque, como muita gente faz, optou por dar-lhes uma educação laica.

Centro Anne Frank em Buenos Aires



O Centro Anne Frank em Buenos Aires, o único da América Latina sobre a autora do famoso diário, que teria feito 80 anos em 2009, está funcionando e atraindo turistas. Diferente de outros no mundo, esse Centro se abre tanto para a história da menina como para o relato das perseguições e assassinatos levados a cabo pela última ditadura militar argentina.

O local, no bairro de Belgrano, é chamado de Casa Hilda, nome da doadora do espaço, que quando ali vivia acolheu pessoas perseguidas. Segundo o diretor do Centro Anne Frank, Héctor Shalon, ela "foi uma casa-símbolo de sensibilidade social". No local, podem-se ver fotos, textos e objetos ligados ao período em que a família de Anne viveu escondida num sótão em Amsterdã, durante a Segunda Guerra, antes de ser denunciada e enviada a campos de concentração (onde todos, menos o pai, morreram).


Reflexões de Guila Flint sobre guerra e paz


A repórter da BBC Brasil em Tel Aviv, Guila Flint, esteve em São Paulo e no Rio para lançar o livro "Miragem de Paz - Israel e Palestina - Processos e Retrocessos" (editora Civilização Brasileira), com textos feitos entre 1995 e 2009 para a BBC Brasil e, entre outros, O Estado de S. Paulo, Carta Capital e Globonews. Como judia brasileira radicada há 40 anos em Israel, ela está preocupada com o futuro do país, já que a paz não lhe parece próxima e as oportunidades de uma negociação produtiva foram sendo fechadas, nos últimos anos, pelos radicais dos dois lados.

Leia abaixo entrevista dela no site da BBC Brasil, em matéria de Rodrigo Durão Coelho sob o título de Livro de repórter da BBC retrata 'agonia' no Oriente Médio.
"Escolhi 315 textos de cerca de 5 mil. São entrevistas, análises, reportagens e boletins, uma variedade que cria dinamismo. Muitos capturam o calor do momento, trazendo personagens israelenses, palestinos e brasileiros", diz a repórter.

A capa da obra, a foto de uma pintura paradisíaca do artista britânico Banksy na barreira israelense da Cisjordânia, ilustra o que a autora chama no título de "miragem", para definir as negociações entre os dois lados.

Dividido em quatro capítulos, o livro de Flint narra de forma cronológica o que ela chama de "agonia do processo de paz" entre israelenses e palestinos.

O primeiro, intitulado O Grande Golpe, refere-se ao período entre 1995 e 1999, após o assassinato do então premiê israelense Itzhak Rabin por um extremista judeu e o primeiro governo de Binyamin Netanyahu.

Para Flint, a morte de Rabin foi um dos mais duros golpes ao processo de paz, responsável pelo aumento do extremismo nos dois lados.

O segundo capítulo, Nova Esperança, Decepção e Explosão, engloba textos produzidos entre 1999 e 2006, época dos governos de Ehud Barak e Ariel Sharon; o ínicio da segunda Intifada (levante) palestina; o aumento do número de atentados suicidas palestinos; o início da construção da barreira israelense na Cisjordânia; a morte de Yasser Arafat e a reocupação de cidades palestinas.

A terceira parte, Miragem de Processo e Duas Guerras, referente aos anos de 2006 a 2009, fala da vitória do Hamas nas eleições palestinas, as pouco frutíferas negociações entre Ehud Olmert e o líder palestino Mahmoud Abbas, a guerra no Líbano, a ofensiva de Israel contra Gaza e a expulsão do grupo Fatah do território.

O capítulo final, De Volta à Estaca Zero e Impasse, fala sobre o novo governo de Netanyahu, que assumiu novamente neste ano o cargo de premiê israelense.

Jornalista desde 1992, quando começou a escrever sobre o Brasil para a mídia israelense (em 95 inverteu os papéis, escrevendo sobre o Oriente Médio para o Brasil), Guila Flint se diz hoje muito mais pessimista em relação ao processo de paz do que era na década passada.

"Eu imaginava que o assassinato de Rabin fosse apressar a paz, que a sociedade se organizaria contra as forças fundamentalistas, contra a extrema direita", diz ela.

"Mas a ampliação dos assentamentos judaicos foi o principal fator que fez os palestinos perderem fé no processo. Por outro lado, o aumento dos atentados suicidas, entre 95 e 2003, tornou muito difícil para os pacifistas de Israel convencer a sociedade de que a paz é possível."

"Um acordo de paz hoje é mais urgente que nunca, porém mais improvável", completa.

A autora diz que, entre os textos escolhidos para seu livro, existem pitadas de humor. Ela cita a história de um assaltante israelense que roubou uma bolsa na praia de Tel Aviv e depois percebeu que, dentro do objeto furtado, carregava uma bomba.

"Ele entrou em pânico e chamou a polícia. Não só foi isento de responder pelo furto, mas foi considerado um herói, por ter salvo muitas vidas", conta Flint.

Além dos textos, o livro de 518 páginas traz ainda versões atualizadas de mapas dos assentamentos judaicos e da barreira israelense construída na Cisjordânia (Rodrigo Durão Coelho).

12.10.09

Drama de identidades

Uma nova exposição de desenhos, quadros, fotos e vídeos, Drama de Identidades, no Beth Hatefutsoth, o Museu da Diáspora Judaica, em Tel Aviv, usa referências irônicas, teatrais e poéticas para pensar questões ligadas à identidade judaica e israelense, tema permanente da arte no país.



Aqui, “Arvit” (ou "oração do anoitecer") é uma video-instalação (com som em hebraico e árabe) de Dafna Shalom, em que a figura da mulher, de olhos vendados, representa a passagem do dia para a noite e a falta de poder daqueles a quem a visão é negada, o que, na interpretação da curadoria, remete à tensão entre modernidade e tradição e desafia a dicotomia entre “arabismo” e “judeidade”.

Abaixo, instalação de Lea Mauas e Diego Rotman, do grupo Sala-Manca.

A questão da identidade, aliás, informa todo o processo de renovação do Beth Hatefutsoth, que ao custo de 25 milhões de dólares vem sendo realizado por equipes de consultores, arquitetos e historiadores israelenses e estrangeiros. Quando as obras terminarem, em 2012, o museu mudará de nome. Passará a se chamar Museu do Povo Judeu, já que contará toda a sua história, inclusive na relação, ora amigável, ora conturbada, com o Estado de Israel.

Visite essa e outras exposições temporárias no site http://www.bh.org.il/exhibition-lobby.aspx

Reformistas contra regulamentação no Kotel

Mulheres judias etíopes no Muro das Lamentações
Os judeus reformistas estão se mobilizando, no mundo todo, para tentar reverter a "regulamentação" da cerimônia em que a Agência Judaica (que promvoe a imigração para Israel) entrega as carteiras de identidade dos novos imigrantes no Kotel, o Muro das Lamentações, reconhecendo nesse espaço simbólico o direito à cidadania israelense de todo judeu que faz aliá.

A direção do Kotel, após cerimônia em que imigrantes etíopes manifestaram seu júbilo com cânticos e danças típicas, decidiu exigir a separação das famílias por gênero e proibir que a entrega dos documentos seja efetuada por mulheres.

O Movimento Reformista em Israel, liderado por Paula Edelstein - presidente do Conselho Diretor do Departamento de Aliá da Agência Judaica - quer que a Agência rejeite tal decisão, ou escolha outro espaço público, também significativo (como o Monte Scopus ou o Monte Herzl), para a cerimônia, que é um momento de alta voltagem emocional para os novos imigrantes.

A mobilização está ocorrendo por meio do envio de mensagens a Natan Sharansky (NatanSh@jafi.org)e Richie Pearlstone (Richiep@jafi.org), respectivamente presidente da Agência Judaica e do seu Conselho Diretor.

"Minha Luta" em quadrinhos japoneses


A adaptação de Mein Kampf (Minha Luta) ao manga, popular formato das histórias em quadrinhos japonesas, continua a gerar polêmica na Internet. É apologia de ideias totalitárias e antissemitas? Ou "distração" de um editor chamado Kosuke Maruo? Este diz que sua intenção foi permitir que cada leitor forme sua opinião...

Mais de 50 mil exemplares de Waga Toso (Minha Luta em japonês), com 190 páginas, já foram vendidos no país, inclusive on-line, desde o início do ano. Na mesma coleção, já saíram obras como A Metamorfose, de Kafka, e O Capital, de Karl Marx (este bateu o recorde de vendas, 120 mil exemplares).

Não é a primeira vez que Mein Kampf provoca polêmica no Japão. Desde 1973 existe uma edição de bolso do livro e os japoneses nunca acederam aos pedidos para retirá-la das livrarias.

9.10.09

Judeus sem saber

( por Baudouin Eschapasse, jornalista, em História Viva, outubro de 2009)


Eduardo Manet não esquece aquela noite de junho de 1943. O tempo estava bom em Havana. Ele e a mãe tinham ido ao cinema. Na volta para casa, o futuro escritor cubano ouviu a mãe explicar que ela havia nascido em uma família “marrana” (...)

Sessenta anos depois, o escritor manteve gravado na memória esse dia em que descobriu o segredo de sua família (...).
 Veja artigo na íntegra em: História Viva - judeus sem saber