29.12.09

A linguagem vazia e exacerbada do Terceiro Reich *


LTI — A linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer. Tradução de Miriam Bettina Paulina Oelsner. Editora Contraponto, 425 pgs. R$ 60
(resenha publicada no Prosa Online (Prosa e Verso) de O GLOBO em 28.12.2009)


Minuciosos, objetivos, mantendo quase sempre um distanciamento “científico” em relação ao seu objeto, os textos que integram o livro “LTI — A linguagem do Terceiro Reich” (a sigla LTI corresponde a Lingua Tertii Imperii) são, originalmente, parte dos “Diários” que o filólogo judeu-alemão Victor Klemperer (1881-1960) escreveu durante o regime nazista (1933-1945). Por 12 anos, o povo alemão ouviu e usou o idioma empobrecido e monótono que confundia domínio público e privado e não distinguia linguagem escrita de oral: tudo era discurso e propaganda. “Tu não és nada, teu povo (Volk) é tudo”, pregava-se, enquanto se apagavam os traços do passado e se alardeava o futuro radioso do império que devia durar mil anos.

Combatente na Primeira Guerra, Klemperer recebeu com a perplexidade dos alheios à política o avanço do totalitarismo nazista. Convertido ao luteranismo, casado com uma cristã, respeitado catedrático de letras latinas na Universidade de Dresden, crítico especializado em literatura francesa, proclamava-se uma “alma” impregnada de germanidade. Indiferente ao destino dos judeus e antissionista, acabou se tornando, ao registrar meticulosamente o que lhe ocorreu no Estado nazista, uma das melhores testemunhas da maior tragédia judaica contemporânea.

“Sentia-me agredido pelas frases dos cartazes, pelos uniformes marrons, as bandeiras, o braço estendido na saudação nazista e os bigodes aparados no estilo de Hitler. Fugia de tudo isso, absorvido em minha profissão”, escreveu. Aos poucos, essa fuga tornou-se inviável, e a imposição traumática de uma identidade deu-lhe o sentimento, provisório, de pertencimento ao povo judeu (algo similar ocorreu a Primo Levi, que disse: “tornei-me judeu em Auschwitz”).

Mesmo depois da Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938 (quando foram quebrados os vidros das sinagogas e lojas pertencentes a judeus em toda a Alemanha), o que levou muitos intelectuais a emigrarem, Klemperer manteve-se aferrado à pátria. Segundo os padrões raciais do Terceiro Reich, era um não-alemão, sem uma gota de sangue “ariano”. Segundo ele, os nazistas é que eram não-alemães! Se o fossem, argumentou, não teriam decretado sua expulsão da universidade (em 1935), nem confiscado seus livros, sua casa, sua máquina de escrever (em 1938)... Tampouco o teriam proibido de frequentar bibliotecas, nem o teriam obrigado (a partir de 1941) a usar a estrela amarela e a trabalhar como operário não remunerado dez horas por dia — “privilégio” que o salvou do “transporte” para um campo de extermínio.

Em 13 de fevereiro de 1945, o maciço bombardeio britânico produziu 35 mil mortes e ensejou o caos em Dresden. Klemperer, sobrevivente por pura sorte (estava na rua no  dia em que seu prédio foi arrasado), arrancou a estrela amarela e saiu da cidade com a mulher. Os “Diários”, levados por ela para a casa de uma amiga, estavam a salvo. Terminada a guerra, o casal retornou. O filólogo tornou-se membro do Partido Comunista da nova República Democrática Alemã e chegou a deputado, prestigiado representante do povo alemão (seus "Diários" viraram filme).

Povo era uma das palavras preferidas de Hitler e de seus ministros, empregada, diz Klemperer, “com a mesma naturalidade com que se coloca uma pitada de sal na comida”. E quem era estranho ao povo, como os judeus, os comunistas, os eslavos e os ciganos, entrava na categoria de inimigo mundial (Weltfeinde). Contra esses inimigos se recorreu desde o início ao que o filólogo anotou como sua “primeira palavra especificamente nazista”: Strafexpedition (expedição punitiva, contra civis), dita ao telefone pelo filho adotivo, entusiasmado com o regime. Klemperer cortou a ligação e nunca mais se falaram. A palavra heroísmo mudara de sentido.

Nos momentos culminantes, a LTI é uma linguagem de fé exacerbada, que aproveita, esvaziando-os de seu significado, elementos do cristianismo. O primeiro Natal após a anexação da Áustria foi celebrado como a Festa da Alma Alemã, o Natal da Grande Alemanha, sem qualquer menção ao judeu Jesus. A palavra “eterno” é vital para a mística da LTI. No Terceiro Reich, tudo é eterno, tudo é histórico, tudo é único. E tudo é grandioso: a cada discurso de Hitler (quase todos “de importância histórica mundial”), mesmo quando a derrocada militar se aproximava, as manchetes gritavam: “O mundo escuta o Führer”. Quando se vencia uma batalha grande, ela era citada como a maior batalha da História Universal.

Essa propensão ao superlativo, que Klemperer diz ocorrer naturalmente em outras latitudes (como os países latinos), foi um fenômeno sem precedentes na Alemanha e, portanto, muito mais virulento. Às vésperas do desembarque aliado na costa atlântica, os nazistas proclamavam a superioridade de suas forças e mantinham expressões como “vitória final”. A recusa a admitir a realidade é atribuída pelo filólogo à influência do romantismo alemão, arraigado na mentalidade coletiva, que se por um lado permite os mais altos voos da imaginação, por outro abre caminho para a aceitação de todos os exageros.

Publicado no Brasil 62 anos após a primeira edição em alemão, o livro vem sem glossário. Este pode ser acessado na tese de mestrado da tradutora, Miriam Bettina Paulina Oelsner. Ali se encontram 600 termos, com suas respectivas traduções, da linguagem nazista, muitos dos quais perduraram após o fim do regime (www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8144/tde-21032005-124844/).

* Heliete Vaitsman é jornalista, tradutora, diretora do Museu Judaico-RJ

22.12.09

Memória e História


Um dos grandes mestres da História judaica, Yosef Hayim Yerushalmi morreu em Nova York no último dia 8 de dezembro, aos 77 anos. Reconhecido pela rara combinação de erudição, brilho analítico e texto agradável de ler, ele abre assim o primeiro capítulo do livro “O Moisés de Freud – Judaísmo Terminável e Interminável” (editora Imago, tradução de Júlio Castañon Guimarães).

Em uma conversa que deve ter ocorrido em torno de 1908, Freud contou a Theodor Reik a seguinte piada:

Perguntaram ao menino Itzig na escola: “Quem foi Moisés?” Ele responde: “Moisés era filho de uma princesa egípcia”. “Isto não é verdade”, diz o professor. “Moisés era filho de mãe hebréia. A princesa egípcia encontrou o recém-nascido em uma cesta.” Mas Itzig responde: “É o que ela diz!”

A piada nos chama a atenção por dois aspectos; em primeiro lugar, o precoce Itzig parece já mostrar talento para o que Paul Ricoeur, referindo-se ao próprio método de Freud, chamou elegantemente de “hermenêutica da suspeita”; e em segundo lugar, porque foi Freud, afinal, quem nos ensinou a levar a sério as piadas[...]

Freud sugeriu em "Moisés e o Monoteísmo", diz Yerushalmi, que havia quase uma transmissão genética de memórias inconscientes. Essa transmissão explicaria para Freud, prossegue o historiador, “o poderoso sentimento de que, para o bem ou para o mal, um indivíduo jamais pode efetivamente deixar de ser judeu”.

Yerushalmi, nascido no Bronx de pais russos, foi por 28 anos o influente diretor do Centro de Estudos Judaicos e de Israel da Universidade de Colúmbia. Autor de interesses abrangentes (sua dissertação de doutorado foi sobre o médico marrano Isaac Cardoso), seu trabalho mais citado são as reflexões sobre a memória coletiva do povo judeu, Zakhor: História Judaica e Memória Judaica, que examina o conflito entre o vigoroso (e não verificável) relato coletivo judaico, pleno de emoções e paixões, e a História propriamente dita, com sua exigência de evidências.

Tia Pepe - a que nunca falou, mas sempre sorriu (e dançou)

Por falar em memória, vejam como o texto memorialístico abaixo, "íntimo", também remete ao coletivo. A autora é a gaúcha Clélia Estill, fonoaudióloga radicada no Rio, ex-presidente da Associação Nacional de Dislexia. Ela recupera com emoção o universo da família materna, os Federbusch, imigrantes que se fixaram na localidade de Barão Hirsch depois da Primeira Guerra.
Tia Pepe mais queria saber escrever do que falar, eu acho. Sempre que eu ia à casa da Vó, aos domingos, ela me fazia sinais de que queria ver os meus cadernos de aula – eu tinha sete anos e sabia mais coisas do que ela, pensava. Mas a ensinei a escrever e falar as vogais – todas!

Tia Pepe nasceu surda, muito surda, tão surda que nunca ouviu um som na vida, mas dançava como ninguém, um espanto para nós, crianças ouvintes, dançantes, falantes, mas não tão pensantes ainda. Eu era a única menina da família naqueles tempos. Mal acabava o almoço, ela me levava para o quarto dela, que era da minha avó Amália também. Começava a me mostrar tesouros – cremes e perfumes, bijuterias novas e outras já vistas, roupas e camisolas. E fazia seu gesto de beleza, um biquinho com a boca, ou todos os dedos juntos colados aos lábios, e explodia mãos e lábios ao mesmo tempo e com os olhos perguntava – não são bonitos?

O quarto delas – vó e tia – cheirava a perfume e tinta de cabelo. Eu não gostava do cheiro, mas me fascinava com as coisas que ela ia tirando de dentro de velhas caixas, algumas embrulhadas em papéis amarelados, outras envoltas em papéis de seda que protegiam as roupas novas da tia Pepe. Ela era muito vaidosa, mostrava com orgulho o corpo, que era mesmo bem bonito, e gostava de usar vestidos justos modelando-o.

Nunca falou, a tia Pepe; mas sempre sorriu.

Com certeza foi a pessoa mais em paz com a vida que conheci, apesar da triste história de sua vida de criança – história que conheci aos poucos, pois minha mãe não gostava de falar no passado. O pai da tia Pepe, meu avô Felipe Federbusch, veio para o Brasil, lá pelos anos 1920, de uma aldeia na Polônia, Borislav [hoje Ucrânia] trazendo a família: Vó Amália e os filhos, Jacob, Abrahão, Menach (tio Max)e Tonia (minha mãe).

Tia Pepe, com mais ou menos seis anos, não pôde vir junto com a família porque era “deficiente” e o governo brasileiro só aceitava imigrantes que pudessem responder por sua produção e sustento. Foi uma “escolha de Sofia”. Ou o avô salvava a maior parte da família, enquanto tentava provar que poderia sustentar a filha deficiente quando chegasse ao Brasil, ou ficava na miséria da Polônia e morreriam todos em algum dos “pogroms” que volta e meia dizimavam as aldeias judias.

A menininha ficou com uma família que viria mais tarde para o Brasil. Tia Pepe viu seus pais e irmãos partirem deixando-a para trás. Não sei nem imaginar o que devem ter sofrido todos eles. Se ficar alguns dias sem ver os filhos e netos é tão difícil para mim, imagino o horror com que todos viveram aquela separação, tão indefinida quanto ao tempo de reencontro...

Mas tia Pepe não combina com estes pensamentos – ela não falava, mas sempre sorria. Um ano depois da chegada ao Brasil meu avô provou ao governo que poderia sustentar a filha sem dar despesas ao país que os “abrigava”... Conta–se que a menina veio com uma família que ficaria na Argentina. Dali ela veio para o Brasil na companhia de desconhecidos, que a trouxeram até o interior do Rio Grande do Sul, onde meus avós moravam, na localidade de “Barão Hirsch” [em 1891, o barão judeu Maurice Hirsch fundou a Jewish Colonization Association (ICA) com o objetivo de retirar os judeus da Europa Oriental e assentá-los como agricultores].

Então a menina encontrou seus pais e irmãos e tratou de ser feliz. Aprendeu a cozinhar com a mãe e a costurar não sei com quem. Costurava tão bem que foi a costura de alfaiate que a sustentou até o final de sua vida. Quando muito jovem, começou a trabalhar numa alfaiataria, uma oficina de costura de roupas masculinas, ternos forrados de seda e calças com costuras muito bem acabadas. Tia Pepe trabalhou até se aposentar. Primeiro na alfaiataria e mais tarde na fábrica de bolsas do tio Max.

Só conheci a tia Pepe adulta. Na verdade nem sei se meus tios eram tão velhos como eu pensava – eu e Mario, meu irmão, éramos as únicas crianças da família, e pensávamos que todos eram velhos. Mas, pensando bem, os tios deveriam ter entre 20 a 25 anos quando eu nasci, em 1940.

A dança da tia Pepe era um sucesso – o tio Jacob tinha uma coleção de rádios e a casa da Vó Amália ficava num sobrado com chão de tábuas corridas. Quando o rádio tocava, o chão vibrava, e era com a vibração do assoalho que ela percebia o ritmo, mas não a melodia da música, e dançava conosco. Lembro que eles tinham muitos amigos surdos, que ficavam mudos porque não ouviam, e recebiam muitas visitas aos domingos.

“Eles” é porque bem mais tarde nasceu, já brasileiro, meu tio Waldemar, que também era surdo. Só que tio Waldemar tinha um resto de audição e aprendeu a falar (mais tarde eles fundaram uma Associação de Surdos e Mudos e tio Waldemar deu até uma entrevista no rádio).

Tia Pepe e Vó Amália faziam biscoitos enroladinhos de amendoim e guardavam numa lata enorme. Numa outra lata, também enorme, ficavam os “pletsales”, biscoitos com canela e açúcar, em forma de meia-lua. Aos domingos, no meio da tarde, junto com o chá, ela trazia aquelas latonas, a gente enfiava a mão lá dentro e trazia a mão cheia dos mais cheirosos e deliciosos biscoitos de amendoim. Uma coisa!

Mas bom mesmo era a expressão de alegria com que ela nos via comer as delícias que preparava. Às vezes nos dava os tais biscoitos escondidos, porque, claro, nossa mãe não ia deixar a gente se empanturrar de doces – como é que poderíamos sobreviver sem um jantar?

Assim o tempo foi passando e tia Pepe não casou, mas acho que namorou um dos amigos da turma dos bailes. Ela tinha uma amiga, chamada Rosa, que se casou e teve filhos; outros da turma também se casaram, tiveram filhos, e a vida foi tocando.

Casei, tive filhos e vim morar no Rio de Janeiro. Um dia, tio Max me telefonou de Porto Alegre e pela primeira vez me pediu “um favor”. Mal sabia ele que o tal favor viria a ser uma grande alegria para todos nós. É que tia Pepe tinha vindo visitar uns amigos no Rio: viera de ônibus e ele nem sabia se ela tinha chegado bem, pois os amigos também eram surdos e não sabiam escrever – mas ele tinha o endereço.

Então lá fomos nós, meu marido Denis e eu, procurar a tia Pepe em uma ruazinha sem asfalto no subúrbio, em Cascadura. Encontramos tia Pepe numa casa pobrezinha, mas feliz como sempre. Mais feliz ela ficou quando a convidamos a passar uns dias conosco, em nossa casa de Jacarepaguá. Ela aceitou, mas, como era do seu feitio, trouxe a filhinha do casal para passear em Jacarepaguá. Não esqueço a expressão de deslumbramento quando ela viu a quantidade de árvores e a piscina de nossa casa. A menininha dormiu no quarto da Flavia e Denise, e tudo era festa naqueles dias. Fomos ao Corcovado, à praia da Barra, a Copacabana, ao Jardim Botânico.

Em compensação ela fez “borsch”, sopa de beterrabas e batata cozida, que era o que mais havia para comer na Polônia. Fez também caldo de galinha, bolinhos e biscoitinhos de amendoim. Bordou uma tapeçaria, aquele quadro com um cavalo, que faço questão de manter na parede, para que a gente se lembre do exemplo de vida que foi a tia Pepe.

Muito tempo passou – tia Pepe e todos os tios morreram, meus filhos cresceram, eu virei avó, trabalhando cada vez mais em fonoaudiologia e psicopedagogia. Um dia foi a um Congresso no INES – Instituto Nacional de Educação de Surdos. Era um congresso internacional e havia tradutores de Inglês/Português; Português/Inglês; e língua brasileira de sinais – LIBRAS. Fiquei tão comovida vendo aquela linguagem, agora considerada uma língua oficial, que depois das palestras fui cumprimentar a jovem tradutora em LIBRA.

Comecei contando a ela sobre meus tios e ela quis saber o nome deles. “Ora!", disse eu, "você não vai conhecer, eles viviam lá em Porto Alegre e já morreram faz tempo”.

“Não me diga que seus tios são a Pepa e o Waldemar!”, disse ela, com muitas lágrimas nos olhos. “Você é a Clélia, nunca esqueci dos dias que passei em sua casa, e como Flavia e a Denise eram lindas e me deixaram dormir no quarto delas”.

A tradutora era a filha do casal de surdos-mudos, que aprendeu a traduzir a vida para seus pais e naquele momento traduziu para mim o sentido das escolhas - o que se escolhe pode custar a ser entendido, mas um dia explode aos nossos olhos como um clarão de luz.

Não por acaso fui me encaminhando ao trabalho com as pessoas ditas deficientes, hoje consideradas especiais. Agora, quando todos são chamados a conviver com as diferenças, venho a descobrir o que a família Federbusch já havia me ensinado: “Somos todos especiais, somos todos incompletos e convivendo vamos nos completando uns aos outros”. Tia Pepe nunca viveu nem se sentiu como uma deficiente em nossa família, por isto trabalhou, compartilhou o que tinha, viajou, trazendo alegria aonde passava. E todos aprendemos naturalmente a nos comunicar com ela numa outra forma de linguagem – éramos bilíngües e nem sabíamos!

Contos de Leandro Sarmatz *

HARRY ABBOTT
Harry Abbott, o ator americano, um ex-viciado em metadona, estava ficando louco -pelo menos é o que andavam dizendo no set. Vivendo há mais de três meses isolado na Amazônia com W. H., o diretor alemão, além de uma numerosa equipe de atores e figurantes das mais diversas nacionalidades, Abbott estava ali para protagonizar um filme fantasioso sobre ninguém menos que Adolf Hitler. O enredo deveria se concentrar na suposta captura de um Führer já octogenário, que sobrevivia como um bicho no meio da floresta brasileira.

Para ler a continuação deste e de mais dois contos do autor clique na revista on line Tropico.

* Leandro Sarmatz é escritor e jornalista. Nasceu em Porto Alegre e vive em São Paulo. É mestre em Letras, autor do livro de poemas "Logocausto" (Editora da Casa, 2009) e da peça "Mães & Sogras" (IEL, 2000), que será montada em Porto Alegre em abril.

17.12.09

Sobre o Eixo, uma frase perturbadora

Memória
"Adeptos do eixo nazifascista ainda existem na diplomacia brasileira. O que me deixa indignado é que alguém como o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que teve a coragem de dizer que a Alemanha e o Japão estão excluídos do Conselho de Segurança da ONU por terem tido a ousadia de desafiar a liderança anglo-saxônica do mundo (Mundo, 6/12), seja ministro de Assuntos Estratégicos do Brasil.

Em memória dos milhões de mortos da Segunda Guerra, fica aqui o meu protesto."

ALBERTO GOLDMAN , vice-governador de São Paulo (São Paulo, SP) - carta publicada na Folha de São Paulo em 15 de dezembro de 2009.

A reação de Goldman seguiu-se à declaração do Ministro, publicada na Folha de 6 de dezembro,em matéria de Claudia Antunes reproduzida abaixo. A frase sobre Alemanha e Japão, que omite o caráter totalitário e os crimes contra a humanidade do Eixo, cabe na perspectiva relativista que "naturaliza" fatos históricos cujos detalhes são pouco conhecidos pelo público.

Ministro cobra desarme de países atômicos

O ministro de Assuntos Estratégicos, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, elogiou e aprofundou a declaração feita na quinta-feira, na Alemanha, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de que as potências atômicas precisam se desarmar para ter "autoridade moral" para cobrar o desarme de países como o Irã.

"O controle da situação militar [no mundo] exige o desarmamento dos países nucleares, não o desarmamento dos desarmados, que não colocam nenhum país em risco. O não desarmamento dos países nucleares é que leva à proliferação, porque os países que se sentem ameaçados sabem que eventualmente não serão atacados se estiverem armados", afirmou o ex-secretário-geral do Itamaraty.

"Fico feliz porque escrevi isso antes das declarações do presidente Lula", disse, antes de comentar: "A Coreia do Norte não tem o destino do Iraque porque tem a bomba".
Guimarães encerrou na noite de anteontem, no Rio, conferência do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty -entidade de cuja direção foi afastado em 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso, por atacar eventual ingresso do Brasil na Alca (Área de Livre Comércio das Américas).

Conhecido pela oposição ao sistema internacional criado sob a hegemonia dos EUA, o ministro fez afirmações que qualificou de "heterodoxas" ao analisar as "três crises internacionais" -econômica, ambiental e de governança- e sua relação com "quatro tendências": globalização, multipolarização, normatização e transformações tecnológicas. Ele descreveu esforços das potências ocidentais para aprofundar, no pós-Guerra Fria, as normas pelas quais concentram poder. Disse que os acordos de não proliferação "garantiram privilégios a certos Estados", que tentam ampliá-los. "Também não querem que os países não armados tenham armas convencionais. Facilita muito, não é?"

Citou as visitas recentes dos presidentes do Irã, de Israel e da Autoridade Nacional Palestina e ironizou os que criticaram a vinda de Mahmoud Ahmadinejad. "Alguns queriam que nós pedíssemos licença, mas não pediram para o presidente de Israel, aí não precisava, não é?"

Guimarães defendeu a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a inclusão de Brasil, Índia, africanos e as potências do Eixo nazifascista derrotadas na Segunda Guerra, Alemanha e Japão, "depois de tantos anos de purgatório, de punição, por terem desafiado a liderança anglo-saxônica do mundo" (grifo meu).

Segundo ele, o Brasil está em boa posição nas negociações sobre mudança climática por sua matriz energética limpa e pela decisão de adotar metas voluntárias de redução das emissões. O aquecimento global, afirmou, decorre da visão de que "o indivíduo pode consumir o que bem entende, e o produtor produzir o que bem entende", num mundo de recursos naturais que "seriam inesgotáveis", o que levou ao uso intensivo de combustíveis fósseis pelos países desenvolvidos.

A mesma visão pressupunha que os demais Estados "não poderiam chegar ao mesmo nível de consumo". A pregação do desenvolvimento sustentável, disse, surgiu nesse contexto: "Nunca [...] defenderam o crescimento sustentável para os países desenvolvidos, sempre para os subdesenvolvidos. Fica até de mau gosto dizer isso. Mas é a verdade."

Para Guimarães, países como Brasil, Índia e Rússia não são "absorvíveis" pelos três polos em torno de Estados Unidos, União Europeia e China. "Temos a sorte", disse, de poder formar um polo na América do Sul, "base central da política externa brasileira".

O ministro avaliou que o Brasil está em geral bem posicionado diante dos desafios internacionais, com uma exceção importante: inovação tecnológica. Comparou o investimento anual dos EUA em pesquisa, de US$ 300 bilhões, com o brasileiro, de US$ 15 bilhões.

"Se não fizermos avanços, estaremos num patamar inferior de competitividade em termos econômicos, políticos e militares." (Claudia Antunes)

14.12.09

Retrato da Inquisição entre "desvios" sexuais e heresias


Enviado a Pernambuco para caçar hereges judaizantes, o Santo Ofício vê-se às voltas com denúncias de sodomia, lesbianismo e "desvios" sexuais variados, o que produz uma sucessão de tentações para os inquisidores: assim começa a peça “Ecos da Inquisição”, de Miriam Halfim, sob direção de Moacir Chaves [em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal, de sexta a domingo às 19h, até 7 de fevereiro - estudantes do ensino médio público com carteira não pagam]. 

O texto ganhou uma montagem criativa e nada ortodoxa. O diretor optou por mesclar às informações históricas elementos contemporâneos e díspares, a exemplo do som quase permanente da cuíca (e também do tamborim, do repique, do agogô) pontuando as cenas, inclusive as mais dramáticas, e da indígena nua passeando sobre a mesa e sendo alvo da cobiça do inquisidor. Os figurinos também não são de época.

O estranhamento produzido por essa opção ressalta o fosso entre dois mundos (e entre as classes dominantes e as dominadas de qualquer época, ou, como diziam os pernambucanos, entre os cavalcantis e os cavalgados): de um lado, o trópico "caliente" e descontrolado, hiper-sexualizado, do outro os costumes ibéricos e as justificativas para perseguir quem desafia regras. Mas não há bonzinhos nesse enredo: até a índia se vinga fazendo denúncias. E tudo é contado pelo notário, prototípico "homem sem qualidades" cuja rotina é preservada às custas das iniquidades que ele vê se desdobrarem à sua frente. Não fossem suas tiradas de humor e o notário se tornaria um personagem odioso, apesar de medíocre...

São três os momentos retratados: a prisão de acusados por denúncias de sodomia e bigamia na primeira visita do Santo Ofício ao Brasil, a condenação ao desterro do Padre Antônio Vieira e a prisão do dramaturgo Antônio José da Silva, nascido no Brasil e levado preso para Lisboa, onde morreu na fogueira.

Um aspecto interessante do texto é a preocupação didática da autora, que tem dez peças contempladas em diferentes concursos de dramaturgia no Brasil. Quem assistir a "Ecos da Inquisição" vai rir, e celebrar a vida, mas também vai aprender que, dentre as 61 mil pessoas condenadas pela Inquisição em três séculos, 31.350 foram "purificadas" pelo fogo. Haja heresias! E haja denúncias!  Detalhe: o Santo Ofício estimulava a delação, prendia e torturava, mas não matava. As execuções, quando necessárias a bem da ordem vigente, eram sempre feitas pelas autoridades seculares de Lisboa...

Memórias da Leopoldina, por Ieda Rozenfeld

A memória da comunidade judaica dos subúrbios da Leopoldina, que teve seu auge entre 1930 e 1960, vem emocionando muita gente. É uma história de sucesso e superação, em vários pontos similar à dos judeus de Nilópolis e dos subúrbios da Central do Brasil. Clique em Lembrando a Leopoldina - e assista ao vídeo de Ieda Rozenfeld, que também lembra os 60 anos da sinagoga Ahavat Shalom.

12.12.09

Hanukiá de Praga na Casa Branca



No próximo dia 16, este candelabro se iluminará diante dos convidados da Casa Branca para celebrar Hanuká. A tradição foi iniciada por George W. Bush e continua com o governo Obana. O candelabro foi emprestado pelo Museu de Praga e pertenceu a uma família judia tcheca exterminada no Holocausto. Num momento de emoção e simbolismo, será a primeira vez que ele será usado desde a Segunda Guerra.

10.12.09

Clarice Lispector: 22 contos favoritos


Clarice na Cabeceira, organizado para a Editora Rocco por Teresa Montero, é uma  amostra de Clarice Lispector, selecionada por 22 fãs da escritora. É uma seleção afetiva, feita por nomes como Luis Fernando Verissimo, Fernanda Torres, Affonso Romano de Sant’Anna, Rubem Fonseca, Benjamin Moser e Maria Bethânia.

Os textos selecionados estão em cada um dos livros de contos de Clarice: Laços de família (1960), A legião estrangeira (1964), Felicidade clandestina (1971), A via crucis do corpo (1974), Onde estivestes de noite (1974) e A bela e a fera (1979). Junto a cada conto, quem o indicou também compartilha de que modo a presença e/ou a obra de Clarice marcaram sua vida.

9.12.09

Torá escrita em público


Durante um ano, Julie Seltzer, soferet (escriba profissional), vai escrever um rolo da Torá, o mais importante objeto ritual do judaísmo, em público, no Museu Judaico Contemporâneo de São Francisco. A tarefa começou em outubro e termina no outono de 2010: em 62 folhas, 248 colunas e 10.416 linhas, a moça vai escrever 304.805 letras – daí o nome do projeto: “As it is written: Project 304.805 (The Torah Project)”.

Tradicionalmente, a Torá era escrita por homens e privadamente. A soferet não só vai trabalhar numa galeria do Museu, mantendo uma espécie de “exposição em progresso” aberta ao olhar do público, mas responderá a perguntas em sessões especiais e compartilhará informações sobre seu trabalho. O Museu é a primeira instituição pública do mundo a mostrar o processo de escrita da Torá. Os meios, como o bico de pena e o pergaminho, continuam os mesmos que eram há milênios.

Em torno da atividade da escriba, o Museu apresenta outras exposições sobre distintos aspectos da Torá (como objeto histórico, objeto ritual e tradicional), além de obras de artistas contemporâneos e exemplos da ornamentação da Torá ao longo dos tempos.

As reflexões de Julie sobre seu processo de trabalho e conteúdo do que escreve  estão no seu blog: clique aqui para ler.

Escrita judaica e brasileira


Contemporary Jewish Writing in Brazil, lançado nos EUA, dá ao público de lingua inglesa uma boa ideia da diversidade dos escritores judeus brasileiros no século XX. O organizador é Nelson Vieira, professor do Departamento de Estudos Judaicos da Universidade de Brown.

Integram a antologia: Bernardo Ajzenberg, Roney Cytrynowicz, Alberto Dines, Francisco Dzialovsky, Judith Grossmann, Jacó Guinsburg, Marcos Iolovitch, Paulo Jacob, Esther Largman, Jaime Lerner, Eliezer Levin, Clarice Lispector, Elisa Lispector, Samuel Malamud, Cíntia Moscovich, Rosa Palatnik, Samuel Rawet,Samuel Reibscheid, Sônia Rosenblatt, Moacyr Scliar e Amália Zeitel.

7.12.09

Benjamin Moser corrige interpretação de escritora brasileira sobre trecho de sua biografia de Clarice Lispector

Recebi e-mail de Benjamin Moser, autor da recém-lançada em português biografia de Clarice Lispector (editora Cosac Naify), solicitando correção à interpretação de Noga Sklar sobre trechos do seu livro (leia aqui a entrevista de Moser sobre aspectos judaicos de Clarice).
“ (...) Primeiro, pode ser que a demissão do JB não tinha nada a ver com o fato de Clarice ser judia, mas como verá no meu livro, não estou acusando o Nascimento Brito de ser antissemita. Disse que ele precisava agradar ao General Geisel. É uma história complicada, mas não há grande dúvida que a solução encontrada foi a de demitir os judeus. Pode ser uma fantasia, mas o fato é que os judeus, pouco depois da guerra de Iom Kipur, foram, com uma só excessão, demitidos, e que todos acreditaram que foi por isso. O filho da Clarice me disse há poucos dias que ela, sim, acreditava que foi porque era judia, e pode falar com o Alberto Dines se houver outras dúvidas.

Mas pode haver outras opiniões. Onde não pode haver outras opiniões é aqui, quando você escreve o seguinte: "Diz Noga: "A "Chevra Kadisha" não é, como o autor faz soar, uma entidade ortodoxa que só atende a celebridades ou grandes místicos, não, gente. "Chevra Kadisha" é o nome em hebraico [turma santa] de quem provê serviços funerários, lavagem de cadáveres e todo o resto. Tem uma "Chevra Kadisha" em qualquer comunidade judaica (no Brasil, e, imagino, no resto do mundo), quem quiser aí pode conferir".

Se você olhar no livro, vai ver a seguinte frase: (p. 557 da ed. brasileira): "Quatro mulheres da sociedade funerária, a Chevra Kadisha, limparam seu corpo por dentro e por fora, envolveram-no num lençol de linho branco, pousaram sua cabeça num travesseiro cheio de terra, e a cravaram dentro de um caixão simples de madeira."

Não vejo onde digo que a Chevra Kadisha "só atende a celebridades ou grandes místicos." Isso é um ataque absolutamente absurdo e agradeceria a correção".

2.12.09

Teatro contra a intolerância


Duas peças que podem ser vistas no Rio nesse fim de semana, Ecos da Inquisição, de Miriam Halfim, e O Interrogatório, de Peter Weiss, não são apenas "históricas", pois a discussão sobre intolerância e totalitarismo continua atual. O diretor da primeira (que fica até o fim do mês no Centro Cultural da Justiça Federal) é Moacir Chaves, para quem a  Inquisição é um tema contemporâneo:

"A distância temporal esconde a permanência da Inquisição. Distância, aliás, nem tão grande assim", diz ele. "O Santo Ofício só foi extinto em 1821. Além disso, temos bem perto de nós diversos parentes próximos da nefanda instituição. Para não nos estendermos muito, fiquemos com o advento do Nazismo e seu produto final, o Holocausto. A Inquisição? Aconteceu anteontem. A escravidão? Foi ontem. E suas sequelas constituem marcas indeléveis da sociedade brasileira, como a gritante desigualdade social e a desvalorização do trabalho".


Eduardo Wotzik, diretor de O Interrogatório, de Peter Weiss, que volta ao Rio no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico (só em 4, 5 e 6 de dezembro), diz que a peça é “ uma maravilhosa oportunidade de nos lembrarmos que um Estado construído na ignorância está facilmente sujeito à bestialidade”. Para ele, “a miséria espiritual e física, a pobreza, o analfabetismo, a falta de humildade, a ignorância, a falta de noção de cidadania, do limite do outro e de ética, levam à destruição do meio ambiente externo e interno do homem”.

Mitos e fatos: considerações de Noga Sklar

Já dizia Nelson Rodrigues que toda unanimidade é burra. Então, é um alívio conhecer gente – como a escritora Noga Sklar – que ousa ir contra a corrente. Ela faz, em seu blog Noga Bloga,  uma crítica inteligente à biografia do norte-americano Benjamin Moser sobre Clarice Lispector, recém-lançada em português.

Moser fez dezenas de entrevistas no Brasil, mas alguns aspectos da situação no país foram mal compreendidos. Por exemplo, ele alega que foi o antissemitismo que levou Clarice Lispector e Alberto Dines a serem demitidos do Jornal do Brasil nos anos 1970. Mas a imprensa carioca na época era pró-judaica, por conta do pró-sionismo,  exaltando dia sim e outro também o “pomar verdejante” criado em Israel, contraponto ao anacrônico mundo árabe. Na redação do JB, os judeus (poucos, além do Dines; lembro agora de Diane Kuperman, Fichel Davit Chargel e Helena Salem) trabalhávamos sem que a questão judaica fosse assunto para ninguém... Não se falava nisso e pronto. Falava-se muito de política, de questões sociais, da ditadura...Éramos simplesmente brasileiros!

Um trecho que incomodou Noga, entre outros, trata do ritual fúnebre de Clarice. Diz Noga:

A "Chevra Kadisha" não é, como o autor faz soar, uma entidade ortodoxa que só atende a celebridades ou grandes místicos, não, gente. "Chevra Kadisha" é o nome em hebraico [turma santa] de quem provê serviços funerários, lavagem de cadáveres e todo o resto. Tem uma "Chevra Kadisha" em qualquer comunidade judaica (no Brasil, e, imagino, no resto do mundo), quem quiser aí pode conferir.

Enquanto no início do livro fui movida por uma extraordinária simpatia com a trágica história de Clarice, minha conclusão final não poderia ser mais chocante, disparatada, reveladora, cá entre nós: quase todos da geração dela, que é a mesma de minha mãe, por exemplo, teve pais que eram mascates - meu avô, por exemplo, era - pobres, com trauma de imigrantes e de refugiados de guerra cuja memória abalada se consola e enriquece pela existência mística de algum sábio na família (também tenho o meu, um "grande tzadik" pelo lado de vovó, sepultado com honras na mística e sagrada Safed dos antepassados).

Pouco a pouco, foram se ajeitando, e Clarice, neste contexto, termina sendo francamente privilegiada: casada com um homem - segundo relatos diretos de quem o conheceu muito bem - bastante refinado e sensível, viveu no exterior regiamente sustentada pelo estado e pouco lhe faltou durante a vida, mesmo depois de separada do marido. Trauma de escassez, lhes confesso agora, faz parte da psique de qualquer judeu das gerações da guerra, uma fome que não passa, um complexo de pó-de-ovo arraigado que leva ao desespero e do qual poucos se livram, ou se livraram. Eis a nossa história comum grosseiramente resumida.

Leia o artigo completo no blog da autora.

1.12.09

Auschwitz em quadrinhos poloneses


Amor à Sombra da Morte é o primeiro volume (em polonês e inglês) da série Episódios de Auschwitz, de uma editora polonesa que aposta em HQ, histórias em quadrinhos, para divulgar ao público jovem fatos ocorridos no campo de extermínio. O estilo é realista e a chamada é popular, do tipo “Eles encontraram o amor entre os horrores do campo, mas nunca alcançaram o sonho de viver juntos uma nova vida”.

No caso, “eles” são um casal real, Edek Galinski e Mala Zimetbaum, ela judia, ele não, que chegaram a escapar de Auschwitz, mas foram recapturados e mortos. Sobreviventes do campo participaram da criação da série, como consultores.

Os dois volumes seguintes não têm a ver com judeus. Um é o relato sobre o polonês Witold Pilecki, membro da Resistência, que foi voluntariamente para Auschwitz, de onde passava informações, e acabou executado como traidor pelo regime comunista no pós-guerra. O outro é sobre Maximillian Kolbe, frade franciscano que também foi prisioneiro do campo e ficou conhecido como “o santo de Auschwitz”.

Veja mais no site Episódios de Auschwitz

Sinagoga de Olaria faz 60 anos



Fotos de Regina Reznik

A sinagoga Ahavat Shalom, em Olaria, teve seu apogeu com a consolidação e a expansão da comunidade judaica dos subúrbios da Leopoldina, entre os anos 1930 e 1960. Depois, a mudança em massa para outros bairros a deixou vazia, mas o prédio simples, de janelas em basculante, foi mantido pelo médico Soil Zuchen, o último dos imigrantes originais que permanece na região.  Hoje, graças aos esforços de um grupo de antigos moradores, o templo está restaurado, tem minian aos sábados e comemorou, com um grande almoço no CIB, seus 60 anos.


Naqueles tempos, como mostra a foto acima, bris/circuncisão era um assunto simples, sem bufê nem cerimonial, que podia ser realizado em sinagoga. O bebê é Dan Sali Reznik, cercado pelo mohel Moishe Singer, pelo bisavô Tzvi Baum (conhecido como Hershel Shoichet), pelo pai Alberto e pelo avô Wolf Reznik. As fotos estão no livro Judeus da Leopoldina, edição do Museu Judaico.

22.11.09

NEGAR O HOLOCAUSTO É COMO NEGAR A ESCRAVIDÃO NO BRASIL




Um aspecto notável da manifestação deste domingo na praia de Ipanema, contra a visita de Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil, foi a presença de praticamente todas as organizações seculares judaicas do Rio de Janeiro, que vestiram sua “persona” brasileira. Sem complexo de gueto, desfraldando o símbolo verde-amarelo, a comunidade saiu às ruas em companhia de grupos gays, de direitos humanos e umbandistas, protestando contra o totalitarismo, a homofobia, a repressão à mulher e a intolerância religiosa.

O “mestre de cerimônias” Michel Gherman, coordenador acadêmico do grupo Hillel, conduziu o evento sob um sol de quase 40 graus, mantendo durante duas horas um discurso altamente inclusivo e solidário. Ele mencionou até a Revolta da Chibata, liderada pelo marujo João Cândido (o Almirante Negro), que completou 99 anos ontem. E ressaltou que a memória do Holocausto (a tragédia negada por Ahjadinejad) não é uma questão judaica, mas uma questão mundial. Dario Bialer, da ARI, o único rabino presente, reiterou a importância da democracia como regime que preserva os valores humanos.

“Lula, explica ao teu convidado o que são os direitos humanos” e “negar o Holocausto é como negar a escravidão no Brasil” foram dois dos slogans exibidos nos cartazes.

Até mesmo quando um representante islâmico disse que o Corão é generoso a ponto de “perdoar” os homossexuais, os manifestantes (cerca de mil) foram educados: ninguém vaiou! O grupo Arco-Íris não deixou de lembrar que 7 mil homossexuais foram mortos nos 30 anos de ditadura iraniana.

O pessoal sambou e cantou com o afoxé Filhos de Gandhi durante mais de uma hora, até que foram soltos balões brancos, presos numa gaiola, pintados com os valores aprisionados pelo governo do Irã (liberdade de expressão, liberdade sexual, paz, memória do holocausto).

19.11.09

Sinagoga de Frank Lloyd Wright faz 50 anos




Um dos últimos projetos do arquiteto Frank Lloyd Wright, a sinagoga Beth Sholom, em Elkins Park, subúrbio de Filadélfia, Pensilvânia, está celebrando 50 anos em 2009. A construção, de vidro e aço, integra a lista dos Monumentos Históricos dos EUA e é banhada pela claridade, com o desenho do teto evocando mãos unidas em oração.

Segundo correspondência entre o arquiteto e o rabino Mortimer J. Cohen, este pediu que Wright criasse uma sinagoga realmente contemporânea, um “Monte Sinai de luz...forjado em materiais modernos”. Mais detalhes sobre a congregação e o projeto em http://www.bethsholomcongregation.org/.

Oitenta anos de Samuel Rawet


Entre os meios de comunicação da comunidade judaica do Rio de Janeiro na década de 1950, o boletim O Espelho, publicado no subúrbio de Olaria por jovens filhos de imigrantes, foi onde estreou, com contos, críticas teatrais e desenhos, Samuel Rawet, que teria completado 80 anos este ano (nasceu em 23 de julho de 1929, na aldeia polonesa de Klimontow).

Apesar da inserção na vida brasileira, Rawet sentiu-se sempre um excluído, sentimento esse expresso já no livro de estréia, seu único texto "fácil", Contos do Imigrante, de 1956 (aqui, primeira edição, da José Olympio, com capa de Luis Canabrava, oferecida na Internet a R$ 125,00). Ano que, lembra o romancista Esdras Nascimento, foi apontado como um divisor de águas da literatura brasileira devido à publicação de Grande sertão: veredas e...do volume de Rawet!

Saudado como renovador da narrativa curta no Brasil, o jovem formado em Engenharia, cuja língua materna era o idish, teria sido motivo de justo orgulho comunitário não fosse sua contundência e sua visão pouco convencional do mundo, que até hoje produz estranhamento. Ele mesmo arcou com os custos de publicação de vários de seus livros, inclusive de ensaios (atualmente reunidos pela Editora Civilização Brasileira em dois volumes).

Rawet chegou ao Rio em 1936 e viveu no subúrbio até a juventude. Como engenheiro, integrou a  equipe de Oscar Niemeyer e foi o principal calculista do Congresso Nacional. Em 1963, mudou-se para Brasília, onde continuou a escrever contos, romances, ensaios, peças teatrais.

Por muito tempo, Rawet manteve-se fiel à Lei do clã. Mas o maior desejo era ser um brasileiro completo. Não um brasileiro aburguesado, e sim um carioca livre de injunções familiares. Via-se, como escreveu em mais de um ensaio, como dono e senhor de si mesmo e da geografia urbana, trilhando o caminho de bares, praças e gente de todo tipo. Daí, talvez, a necessidade de negar a própria erudição, que poderia colocá-lo sobre indesejado pedestal. Em entrevista ao jornalista Flavio Moreira da Costa em 1972, disse: “Sou fundamentalmente suburbano. Eu aprendi português nas ruas, apanhando e falando errado, e acho essa a melhor pedagogia...”

Mas a fronteira entre imaginação e delírio um dia ficou confusa, como acontece com tantos gênios. Rawet largou a equipe de Niemeyer. E rompeu publicamente, em 1977, com a sociedade judaica que conhecia (e não com o judaísmo como ética e moral), por meio do ensaio Kafka e a mineralidade judaica ou a tonga da mironga do kabuletê. “Estou farto de pathos, farto de ahhs!, ohhhs!, uhhhs!, arreganhos de dentes, deboches (...)”, escreveu. Anunciou que não queria mais saber de amigos judeus, comida judaica, negócios imobiliários judaicos... Morreu em Brasília, em 1984. Sozinho, mas não isolado, pois amigos escritores acolhiam-no, procuravam-no.

Entre os muitos intelectuais que se debruçaram sobre a obra do escritor, Pérola Engellaum, autora da tese de doutorado (UFRJ) Samuel Rawet, a alma que sangra (pode ser lida on line) perguntou: “Por que Rawet?” E assim respondeu:
“(...) Ele expressa em sua trajetória meus mais profundos conflitos, meus profundos temores. Enquanto lia Os sete sonhos e Abama, passei a respirar, a viver minha ancestral melancolia judaica, e estas são as melhores obras, sejam filmes, livros ou músicas, aquelas que nos levam aos nossos limites. Como os românticos, Rawet expressa seu desconforto em relação às engrenagens da modernidade. Expressa também sua indignação com a hipocrisia da comunidade judaica de sua época, que viveu um período de ascensão graças ao desenvolvimentismo do governo JK. Esse brado de inconformismo e revolta atravessa todos os movimentos críticos da modernidade, seja artística ou politicamente (...)”

13.11.09

Israel em 1951


Tel Aviv nos anos 1950,  foto de publicidade da Pan American sobre viagens pelo mundo. Para ver um filme de 30 minutos, de 1951, em que a Air France exalta Israel (em inglês), clique aqui: http://www.road90.com/watch.php?id=V8B8RekAJJ

5.11.09

AMIA: Famílias de vítimas enviam carta a Lula sobre Ahmadinejad no Brasil

A seguinte carta foi enviada ao Presidente Lula pelos  Familiares e Amigos das Vítimasdo Atentado à AMIA, em relação à próxima visita de Ahmadinejad ao Brasil.

Señor Presidente de la República Federativa de Brasil
Sr. Luiz Inácio Lula da Silva

Ante la invitación efectuada por su Gobierno al Presidente de la República Islámica de Irán Mahmoud Ahmadinejad a realizar una visita oficial a su país, los Familiares y Amigos de las Víctimas del Atentado a la AMIA queremos, respetuosamente, transmitirle las sensaciones que nos produce esa decisión y algunas reflexiones al respecto.
Como punto previo a expresar lo mencionado precedentemente, le queremos manifestar que nos causó una profunda sorpresa y un dolor enorme escuchar la noticia de la invitación teniendo en cuenta quien es el invitado y cual es su postura personal y la del país que representa como promotor del odio racial y religioso y como fogonero del terrorismo asesino.
Teniendo en cuenta la coherencia que mantuvo a través del tiempo la política exterior de Brasil, realmente nos duele observar que esta decisión haya prosperado y se haya materializado.

Sabemos muy bien lo que representa una decisión soberana de un país y no queremos que lo que se menciona en esta carta sea tomado como juzgando esa soberanía, pero la amenaza que representa el terrorismo internacional va más allá de fronteras nacionales o actos de gobierno propios de cada país.

Teniendo en cuenta la rica historia que tiene hasta el día de hoy la hermandad entre Brasil y Argentina, la primer reflexión que hacemos es que antes de invitar a este nefasto personaje, hubiese sido bueno tener en cuenta que la justicia Argentina avalada por una decisión de Interpol acusa al entonces Gobierno de la República Islámica de Irán como el responsable internacional del ataque terrorista que sufrió la República Argentina en 1994 que produjo 85 muertos y centenares de heridos.

Señor Presidente de Brasil, un país vecino, socio y hermano del que Ud. representa fue atacado por el terrorismo internacional por decisión Iraní. No es eso lo suficientemente importante a tener en cuenta antes de tomar la decisión que su Gobierno tomó?

Supongamos por un instante que la historia de esta tragedia se hubiese dado al revés, que Brasil hubiese sido la víctima de ese acto terrorista. Como se sentiría Ud. y su país si el Gobierno Argentino hubiese efectuado esa invitación?

Sabemos muy claramente los valores humanos que Ud. demostró a través de su rica historia personal antes y después de ser elegido Presidente de su país, entonces nos preguntamos: como se va a sentir Ud. cuando le toque darle la mano o abrazar a éste promotor del odio y la intolerancia que representa a un país que va de contramano con la búsqueda de la paz y la convivencia entre los pueblos?

En ese momento podrá Ud. pensar que 85 seres humanos residentes en un país hermano de Brasil murieron injustamente por decisión del país invitado del suyo?

Estamos convencidos que su país va camino a convertirse en una potencia internacional de peso en el concierto de la naciones y Ud., en forma personal va en dirección de convertirse en un estadista, y eso es muy bueno.

Pero también sabemos que los estadistas son seres humanos que también pueden equivocarse, y creemos que con esta decisión Ud. se equivocó.

Lo saludamos con el mayor de los respetos.
Dr. Mario Averbuch
Dr. Luis Czyzewski
Nomes dos mortos no atentado estão inscritos na frente do novo prédio da AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina)

3.11.09

Logocausto: poética de Leandro Sarmatz


A poética de Leandro Sarmatz, gaúcho de 36 anos, é sofisticada, marcada por domínio formal e contundência. As palavras não sobram, nem faltam, e emocionam, como vocês podem ler lá embaixo,  em dois poemas de seu livro, Logocausto (Editora da Casa), recebido com elogios pela crítica de São Paulo, onde ele (que é jornalista e mestre em Teoria da Literatura) vive desde 2001.

Por que o título? Ele explica:

“Alguns dos poemas -- inclusive e principalmente aquele que batiza o livro -- tratam de temas que fazem parte das minhas preocupações como leitor/poeta/judeu brasileiro/filho de pais que formaram a primeira geração da família a nascer no Brasil. O eclipse do iídiche é uma dessas preocupações. Minha avó paterna morreu sem falar português -- a não ser palavras para a sobrevivência diária, como "carne", "pão", "manteiga".
Leandro observou, na geração dos pais, nascidos entre os anos 30 e 40, a extinção do idioma que eles haviam falado na infância:
“E não é a extinção só da língua, afinal, mas da visão de mundo, do ethos, de coisas como humor e lamento, piada e praga. Enfim, um mundo inteiro morreu junto com o idioma, como sabemos desde o final da Segunda Guerra. Essa questão, que para muitos pode soar excessivamente intelectual ou até mesmo artificiosa -- bossa de poeta --, para mim tem papel central nas coisas que escrevo e que penso!"
Mas o não-pertencimento, e a errância fadada ao fracasso, também viajam a outras latitudes judaicas, como a península ibérica, e marcam Yehuda Ha-Levi, poema sobre o poeta e teólogo espanhol (1075-1141), que morre ao chegar a Jerusalem, depois de uma vida inteira ansiando pela Terra Santa.

Em 2010 a Editora Record vai publicar o livro de contos de Sarmatz, Uma Fome, e em abril sua peça Mães e Sogras estreia em Porto Alegre.

Logocausto

Uma língua de mortos. Idioma anti-segredo, a sibilar no espelho
seu eco de cova no indo-europeu ainda.
Todas aquelas bocas costuradas, milhões de bocas e mais nenhuma.
Onde haverá céu para suportar tantas vozes elevadas?

Onde encontrar a malícia, aquela impertinência duradoura?
(Luz do leste reprojetada em tumbas: sintaxe que se sente
em casa. Expulsa
e vai: expulsa.)

Palavras não são coisas nem pessoas.
São um nada, uma piada, uma praga, um lamento surdo
um exílio.

E essa morte infinita, multiplicada,
boca contra boca ouvido contra ouvido
boca e olvido — verme, terra e vernáculo.

Vozes submersas: e eu petrificado, gaguejando minha mudez-cimento.
Uma calma forjada: porque se eu soubesse conversar com as sombras,
se eu mastigasse as palavras, e delas um suco que não fosse áspero escorresse abrindo os diques da memória,
irrigando os rios-palavras,
fertilizando campos do idioma —
aí sim: eu estaria mais só do que já estou.

Yehuda Ha-Levi

Logo mais a porta, e atrás jaz a cidade.
Há épocas, gerações, pontos cardeais.

Lá dentro, os telhados e as cúpulas
refletem a luz escassa do findar do dia.

Pensa: Sfarad ficou em algum lugar,
em outra parte, noutra metade,

no oriente e no ocidente, na terra
e nas veias e no ouro. Aqui é leste.

Em algum ponto da Europa, filha
esquiva que, à beira dum abismo,

pisca os olhos e ajeita as tranças,
alguém ou algo: homem, planta,

animal ou pedra, adormece e vai
morrendo, aninhado em neve e luto.

Aqui, não: há sol, é bem verdade,
um sol todo à vontade, sol a pino

que desfalece as folhas, seca a vida,
enegrece a pele, frita o cocuruto.

Mas é um sol dele, Adonai, sol
que ali pendurado o dia todo fica.

Um sol que ele procura, e acha,
mas no fim (Moisés recalcitrante)

não consegue virar a ampulheta,
e tomba à margem, à porta da cidade.

Morre. Antes, clama ao Deus pesaroso
e cinza: essa nuvem, esse vazio, essa morte.

Esplendor dos Camondo - de Constantinopla a Paris (1806-1945)

Um percurso fascinante, cosmopolita, interrompido de maneira trágica pela Segunda Guerra e o Holocausto: essa exposição, com obras que vão da Antiguidade ao impressionismo, fica no Museu de Arte e História do Judaismo, em Paris (Museu de Arte e História do Judaismo, Paris) de 6 de novembro a 7 de março (rue du Temple, 71, a 300 metros do Centro Pompidou).


Durante cinco gerações, os Camondo, uma das grandes fortunas do Império Otomano, foram banqueiros, mecenas, colecionadores de arte e filantropos. Comprometidos com os ideais do Iluminismo, criaram a primeira escola judaica laica da Turquia e foram co-fundadores, em 1864, da Aliança Israelita em Constantinopla.

Emigraram para Paris em 1869-70 e participaram de numerosos projetos importantes, inclusive o financiamento da construção do canal de Suez. Isaac de Camondo, sobrinho-neto do fundador, deixou ao morrer, em 1911, suas coleções para o Louvre, entre elas obras de Manet, Degas e Cézanne, esculturas renascentistas e arte oriental. O outro sobrinho-neto, Moïse, morreu em 1935 e legou ao governo sua mansão na rue de Monceau, além de obras de arte. Em homenagem ao seu filho Nissim, aviador francês morto em combate em 1917, o Museu Nissim de Camondo foi inaugurado em 1936.

Na Segunda Guerra, a filha de Moïse, Beatrice, seu marido e dois filhos foram assassinados em campos de concentração, o que pôs fim à dinastia.

Música e dança

“Let’s Face the Music and Dance,” música e letra de Irving Berlin, é de 1936, momento de graves dificuldades econômicas nos EUA e ascensão do nazismo na Europa. A lembrança vem a propósito do lançamento do livro A Fine Romance: Jewish Songwriters, American Songs, de David Lehman (Nextbook Press). Como se sabe, compositores judeus legaram ao imaginário americano suas mais populares canções, inclusive natalinas...Aqui, Fred Astaire dá seu show:



Nascido na Sibéria em maio de 1888, com o nome de Israel Baline, o compositor chegou a Nova York com a família em 1893. Criado em ambiente de extrema pobreza, mal frequentou escolas e seu primeiro trabalho, ainda criança, foi cantar em troca de moedas nas esquinas. Abaixo, ao lado de Alice Faye, Tyrone Power e Don Ameche

24.10.09

Aspectos judaicos de Clarice Lispector


Nascida Chaia Pinkhasovna na aldeia ucraniana de Chechelnik, Clarice Lispector (1920-1977) sempre desafiou definições. Dizia-se escritora amadora (“pois só escrevo quando tenho vontade”), mas se sentia morta quando parava de escrever. O texto grita, às vezes assusta, a mulher sussurra. “Estou falando do meu túmulo” – diz, a voz quase inaudível, melancólica, poucos meses antes de falecer, em entrevista ao jornalista Julio Lerner, referindo-se ao fato de ter colocado ponto final numa obra. (http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok)

Dizia também que escrevia de forma simples. De sua vida em novelo, porém, pode-se dizer quase tudo, menos que foi simples. O escritor norte-americano Benjamin Moser, 33 anos, que viveu no Brasil, desenrolou a história com minúcias em Why This World,  publicado com críticas elogiosas nos EUA e que chega aqui em novembro, pela Cosac Naify, como Clarice, uma Biografia.

A conjuntura que trouxe a família Lispector ao Brasil, em 1921, foi trágica – a mãe fora estuprada por soldados russos e contraiu sífilis. Clarice nasceu devido à crença, popular na Ucrânia, de que a gravidez neutralizava a doença. A família se estabeleceu primeiro em Maceió, depois em Recife, de onde a escritora saiu para estudar Direito no Rio. Moser, a quem entrevistamos, por e-mail, sobre aspectos judaicos da obra de Clarice, enfatiza a importância da sua origem e a insere num quadro de catástrofe histórica e deslocamento que gera trauma, loucura e, entre os judeus, o "povo do Livro" (para o qual o mundo é "salvo" pela palavra), uma escrita que ultrapassa fronteiras.

Pergunta: A crítica brasileira não deu maior importância à “judeidade” de Clarice e ela mesma evitou referências abertas à tradição judaica em sua obra. A tradução do seu livro vai abrir nova senda nos estudos claricianos? Vai inseri-la num grupo em que entram outros “judeus de alma atormentada”, a exemplo de um Bruno Schulz?
Moser: Isso faz parte de minha ambição para o livro. Embora já houvesse certos críticos que se interessaram pela 'questão judaica' na obra da Clarice, há um outro lado, muito forte, que insiste na sua 'brasilidade', como se fosse preciso escolher entre ser judia e ser brasileira. Isto vem, talvez, de certo 'instinto de nacionalidade' brasileira, na frase de Machado de Assis, mas também porque ela justamente não é, nos seus escritos, explicitamente judia. Mas este lado também é muito judaico. Muitos dos grandes escritores judeus não falam explicitamente, ou só raras vezes, do judaísmo. Pense em Proust ou em Kafka.
           Os judeus, sobretudo os que, como ela, têm sofrido perseguições e exílio, muitas vezes se refugiam em alegorias e em símbolos, e essa experiência histórica lhes dá as mesmas preocupações filosóficas e religiosas: por que Deus insiste, cada vez, em abandonar o chamado 'povo eleito' de maneira tão brutal?

Pergunta: Há alguma explicação que Clarice tenha dado para o nome Macabéa, a personagem nordestina de A Hora da Estrela, referência aparente à trajetória dos macabeus?
Moser: O nome foi dado de propósito, me confirmou sua falecida irmã, dona Tânia [Kaufman]. Acho que uma das glórias daquele livro é a maneira genial com que Clarice reúne tantos aspetos de sua vida e de sua personalidade em pouquíssimas páginas: é explicitamente brasileiro e explicitamente judeu. Aliás, quando se diz que Clarice raramente mencionou o judaísmo em sua obra, é também verdade que ela raramente fala do Brasil, ou pelo menos não no sentido 'folclórico', sobretudo nos romances.
Mas o que acho que seja a referência mais clara aos macabeus é a resistência de Macabéa. Não uma resistência ponderada de uma família aristocrática, como foi o caso dos macabeus, mas a simples insistência em existir.

Pergunta: Seu livro insere Clarice na tradição judaica da “briga” com Deus, algo só possível para os íntimos... Há outras escritoras judias que tenham seguido essa tradição, em geral masculina?
Moser: Não acho que seja uma tradição em geral masculina. Acho que é o resultado natural de quem tem uma certa vocação religiosa ou, como você diz, intimidade com um Deus que então o castiga de maneira terrível, como foi o caso dos judeus no século XX. Sobretudo na região de onde veio Clarice.

Pergunta: Quem são as influências de Clarice nesse ponto? Ou ela é intuitiva? Li um comentário da poeta norte-americana Elisabeth Bishop, dizendo-se impressionada por Clarice não ser uma “leitora”, não demonstrar influências.
Moser: Elizabeth Bishop não ficou 'impressionada' exatamente, ela está dizendo que Clarice era praticamente analfabeta, o que estava longe de ser o caso - mas isso fazia parte da depressão da própria Bishop, em relação a tudo, a começar por sua relação com Lota de Macedo Soares, depois se estendendo ao próprio país da Lota, que no início ela tinha adorado... Falava mal de tudo, mas respeitou Clarice, uma raríssima exceção no panorama da cultura brasileira. Chegou até a traduzir Clarice para o inglês.
            A mentalidade judaica que Clarice demonstra provém de uma coincidência de circunstâncias históricas - a perseguição e o exílio de que já falei - que quando combinada com um gênio expressivo produziu resultados que às vezes se parecem com outros escritores judeus. Mas isso não é a mesma coisa que ter 'influências'. Claro que ela leu muito, gostou ou não gostou, mas a Clarice é puramente original.

Pergunta: O desconsolo de Clarice se explica pelo trauma infantil que você expõe agora pela primeira vez? Como ela teria se sentido na Europa durante o Holocausto, bem ao lado da tragédia dos judeus mas casada com um diplomata e imersa na vida da elite brasileira?
Moser: De acordo com uma crença que ainda hoje existe na Ucrânia, a gravidez podia curar uma mulher de uma doença venérea, como a que a mãe de Clarice contraiu quando foi atacada nos terríveis pogroms que acompanharam o final da Primeira Guerra Mundial e a Revolução bolchevique. Foi uma das dezenas de milhares de mulheres judias atacadas. E, numa tentativa desesperada para curar a mãe, os pais de Clarice decidiram que se ela ficasse grávida, curaria a doença. Uma coisa tão perigosa que quase foi um suicídio. Mas eles eram de uma região muito primitiva e não sabiam disso. A mãe engravidou, e Clarice foi o resultado. Sua sobrevivência foi um milagre. Mas não cura a mãe, que morre quando ela tem 9 anos. E ela vai carregar sempre o peso dessa culpa.
          A violência contra os judeus após a Primeira Guerra foi quase totalmente esquecida porque o que veio depois, na Segunda Guerra, foi pior. Na verdade, só pior na amplidão, na matemática da morte. Mas acho que Clarice nada sabia quando chegou à Europa. Chegou de um Brasil ainda sob a censura do Estado Novo, onde essas coisas não foram publicadas. Os judeus sabiam que a situação estava muito ruim na Europa, mas acho que ninguém no Brasil realmente suspeitava até que ponto. E não está claro quando ela fica sabendo. Acho que a tragédia era dolorida demais. Nesse receio de falar do desastre ela não era a única.

Pergunta: Além da tragédia da mãe, a figura do pai marcou Clarice de que modo? Ele é o "mensch" de um dos contos dela? A palavra, tão intraduzível, evoca outros fatos, outros personagens?
Moser: Dona Tania falou que ele era "o homem de melhor caráter que já conheci". Todos que o conheceram concordam. Foi ele quem salvou as filhas depois da morte da mãe. Ele, um homem quase sem talento para o comércio, que lutou a vida inteira, dia após dia, para se sustentar, conseguiu educar as filhas, dar-lhes um futuro melhor. Foi um esforço quase sobre-humano. Quando morre, muito jovem, Clarice tem 20 anos. Seus sacrifícios não foram em vão. Uma das filhas iria colocar o nome do pobre mascate entre os grandes nomes do Brasil. Mas Pedro Lispector não viveria para ver.

Pergunta: Clarice chegou a pensar, alguma vez, em educar os filhos como judeus? Ou era um legado que não devia ser transmitido?
Moser: Ambos os filhos de Clarice são judeus ainda hoje. Não tiveram educação judaica, não porque Clarice não quisesse transmitir o legado, mas porque, como muita gente faz, optou por dar-lhes uma educação laica.

Centro Anne Frank em Buenos Aires



O Centro Anne Frank em Buenos Aires, o único da América Latina sobre a autora do famoso diário, que teria feito 80 anos em 2009, está funcionando e atraindo turistas. Diferente de outros no mundo, esse Centro se abre tanto para a história da menina como para o relato das perseguições e assassinatos levados a cabo pela última ditadura militar argentina.

O local, no bairro de Belgrano, é chamado de Casa Hilda, nome da doadora do espaço, que quando ali vivia acolheu pessoas perseguidas. Segundo o diretor do Centro Anne Frank, Héctor Shalon, ela "foi uma casa-símbolo de sensibilidade social". No local, podem-se ver fotos, textos e objetos ligados ao período em que a família de Anne viveu escondida num sótão em Amsterdã, durante a Segunda Guerra, antes de ser denunciada e enviada a campos de concentração (onde todos, menos o pai, morreram).


Reflexões de Guila Flint sobre guerra e paz


A repórter da BBC Brasil em Tel Aviv, Guila Flint, esteve em São Paulo e no Rio para lançar o livro "Miragem de Paz - Israel e Palestina - Processos e Retrocessos" (editora Civilização Brasileira), com textos feitos entre 1995 e 2009 para a BBC Brasil e, entre outros, O Estado de S. Paulo, Carta Capital e Globonews. Como judia brasileira radicada há 40 anos em Israel, ela está preocupada com o futuro do país, já que a paz não lhe parece próxima e as oportunidades de uma negociação produtiva foram sendo fechadas, nos últimos anos, pelos radicais dos dois lados.

Leia abaixo entrevista dela no site da BBC Brasil, em matéria de Rodrigo Durão Coelho sob o título de Livro de repórter da BBC retrata 'agonia' no Oriente Médio.
"Escolhi 315 textos de cerca de 5 mil. São entrevistas, análises, reportagens e boletins, uma variedade que cria dinamismo. Muitos capturam o calor do momento, trazendo personagens israelenses, palestinos e brasileiros", diz a repórter.

A capa da obra, a foto de uma pintura paradisíaca do artista britânico Banksy na barreira israelense da Cisjordânia, ilustra o que a autora chama no título de "miragem", para definir as negociações entre os dois lados.

Dividido em quatro capítulos, o livro de Flint narra de forma cronológica o que ela chama de "agonia do processo de paz" entre israelenses e palestinos.

O primeiro, intitulado O Grande Golpe, refere-se ao período entre 1995 e 1999, após o assassinato do então premiê israelense Itzhak Rabin por um extremista judeu e o primeiro governo de Binyamin Netanyahu.

Para Flint, a morte de Rabin foi um dos mais duros golpes ao processo de paz, responsável pelo aumento do extremismo nos dois lados.

O segundo capítulo, Nova Esperança, Decepção e Explosão, engloba textos produzidos entre 1999 e 2006, época dos governos de Ehud Barak e Ariel Sharon; o ínicio da segunda Intifada (levante) palestina; o aumento do número de atentados suicidas palestinos; o início da construção da barreira israelense na Cisjordânia; a morte de Yasser Arafat e a reocupação de cidades palestinas.

A terceira parte, Miragem de Processo e Duas Guerras, referente aos anos de 2006 a 2009, fala da vitória do Hamas nas eleições palestinas, as pouco frutíferas negociações entre Ehud Olmert e o líder palestino Mahmoud Abbas, a guerra no Líbano, a ofensiva de Israel contra Gaza e a expulsão do grupo Fatah do território.

O capítulo final, De Volta à Estaca Zero e Impasse, fala sobre o novo governo de Netanyahu, que assumiu novamente neste ano o cargo de premiê israelense.

Jornalista desde 1992, quando começou a escrever sobre o Brasil para a mídia israelense (em 95 inverteu os papéis, escrevendo sobre o Oriente Médio para o Brasil), Guila Flint se diz hoje muito mais pessimista em relação ao processo de paz do que era na década passada.

"Eu imaginava que o assassinato de Rabin fosse apressar a paz, que a sociedade se organizaria contra as forças fundamentalistas, contra a extrema direita", diz ela.

"Mas a ampliação dos assentamentos judaicos foi o principal fator que fez os palestinos perderem fé no processo. Por outro lado, o aumento dos atentados suicidas, entre 95 e 2003, tornou muito difícil para os pacifistas de Israel convencer a sociedade de que a paz é possível."

"Um acordo de paz hoje é mais urgente que nunca, porém mais improvável", completa.

A autora diz que, entre os textos escolhidos para seu livro, existem pitadas de humor. Ela cita a história de um assaltante israelense que roubou uma bolsa na praia de Tel Aviv e depois percebeu que, dentro do objeto furtado, carregava uma bomba.

"Ele entrou em pânico e chamou a polícia. Não só foi isento de responder pelo furto, mas foi considerado um herói, por ter salvo muitas vidas", conta Flint.

Além dos textos, o livro de 518 páginas traz ainda versões atualizadas de mapas dos assentamentos judaicos e da barreira israelense construída na Cisjordânia (Rodrigo Durão Coelho).