LTI — A linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer. Tradução de Miriam Bettina Paulina Oelsner. Editora Contraponto, 425 pgs. R$ 60
(resenha publicada no Prosa Online (Prosa e Verso) de O GLOBO em 28.12.2009)
Minuciosos, objetivos, mantendo quase sempre um distanciamento “científico” em relação ao seu objeto, os textos que integram o livro “LTI — A linguagem do Terceiro Reich” (a sigla LTI corresponde a Lingua Tertii Imperii) são, originalmente, parte dos “Diários” que o filólogo judeu-alemão Victor Klemperer (1881-1960) escreveu durante o regime nazista (1933-1945). Por 12 anos, o povo alemão ouviu e usou o idioma empobrecido e monótono que confundia domínio público e privado e não distinguia linguagem escrita de oral: tudo era discurso e propaganda. “Tu não és nada, teu povo (Volk) é tudo”, pregava-se, enquanto se apagavam os traços do passado e se alardeava o futuro radioso do império que devia durar mil anos.
Combatente na Primeira Guerra, Klemperer recebeu com a perplexidade dos alheios à política o avanço do totalitarismo nazista. Convertido ao luteranismo, casado com uma cristã, respeitado catedrático de letras latinas na Universidade de Dresden, crítico especializado em literatura francesa, proclamava-se uma “alma” impregnada de germanidade. Indiferente ao destino dos judeus e antissionista, acabou se tornando, ao registrar meticulosamente o que lhe ocorreu no Estado nazista, uma das melhores testemunhas da maior tragédia judaica contemporânea.
“Sentia-me agredido pelas frases dos cartazes, pelos uniformes marrons, as bandeiras, o braço estendido na saudação nazista e os bigodes aparados no estilo de Hitler. Fugia de tudo isso, absorvido em minha profissão”, escreveu. Aos poucos, essa fuga tornou-se inviável, e a imposição traumática de uma identidade deu-lhe o sentimento, provisório, de pertencimento ao povo judeu (algo similar ocorreu a Primo Levi, que disse: “tornei-me judeu em Auschwitz”).
Mesmo depois da Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938 (quando foram quebrados os vidros das sinagogas e lojas pertencentes a judeus em toda a Alemanha), o que levou muitos intelectuais a emigrarem, Klemperer manteve-se aferrado à pátria. Segundo os padrões raciais do Terceiro Reich, era um não-alemão, sem uma gota de sangue “ariano”. Segundo ele, os nazistas é que eram não-alemães! Se o fossem, argumentou, não teriam decretado sua expulsão da universidade (em 1935), nem confiscado seus livros, sua casa, sua máquina de escrever (em 1938)... Tampouco o teriam proibido de frequentar bibliotecas, nem o teriam obrigado (a partir de 1941) a usar a estrela amarela e a trabalhar como operário não remunerado dez horas por dia — “privilégio” que o salvou do “transporte” para um campo de extermínio.
Em 13 de fevereiro de 1945, o maciço bombardeio britânico produziu 35 mil mortes e ensejou o caos em Dresden. Klemperer, sobrevivente por pura sorte (estava na rua no dia em que seu prédio foi arrasado), arrancou a estrela amarela e saiu da cidade com a mulher. Os “Diários”, levados por ela para a casa de uma amiga, estavam a salvo. Terminada a guerra, o casal retornou. O filólogo tornou-se membro do Partido Comunista da nova República Democrática Alemã e chegou a deputado, prestigiado representante do povo alemão (seus "Diários" viraram filme).
Povo era uma das palavras preferidas de Hitler e de seus ministros, empregada, diz Klemperer, “com a mesma naturalidade com que se coloca uma pitada de sal na comida”. E quem era estranho ao povo, como os judeus, os comunistas, os eslavos e os ciganos, entrava na categoria de inimigo mundial (Weltfeinde). Contra esses inimigos se recorreu desde o início ao que o filólogo anotou como sua “primeira palavra especificamente nazista”: Strafexpedition (expedição punitiva, contra civis), dita ao telefone pelo filho adotivo, entusiasmado com o regime. Klemperer cortou a ligação e nunca mais se falaram. A palavra heroísmo mudara de sentido.
Nos momentos culminantes, a LTI é uma linguagem de fé exacerbada, que aproveita, esvaziando-os de seu significado, elementos do cristianismo. O primeiro Natal após a anexação da Áustria foi celebrado como a Festa da Alma Alemã, o Natal da Grande Alemanha, sem qualquer menção ao judeu Jesus. A palavra “eterno” é vital para a mística da LTI. No Terceiro Reich, tudo é eterno, tudo é histórico, tudo é único. E tudo é grandioso: a cada discurso de Hitler (quase todos “de importância histórica mundial”), mesmo quando a derrocada militar se aproximava, as manchetes gritavam: “O mundo escuta o Führer”. Quando se vencia uma batalha grande, ela era citada como a maior batalha da História Universal.
Essa propensão ao superlativo, que Klemperer diz ocorrer naturalmente em outras latitudes (como os países latinos), foi um fenômeno sem precedentes na Alemanha e, portanto, muito mais virulento. Às vésperas do desembarque aliado na costa atlântica, os nazistas proclamavam a superioridade de suas forças e mantinham expressões como “vitória final”. A recusa a admitir a realidade é atribuída pelo filólogo à influência do romantismo alemão, arraigado na mentalidade coletiva, que se por um lado permite os mais altos voos da imaginação, por outro abre caminho para a aceitação de todos os exageros.
Publicado no Brasil 62 anos após a primeira edição em alemão, o livro vem sem glossário. Este pode ser acessado na tese de mestrado da tradutora, Miriam Bettina Paulina Oelsner. Ali se encontram 600 termos, com suas respectivas traduções, da linguagem nazista, muitos dos quais perduraram após o fim do regime (www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8144/tde-21032005-124844/).
* Heliete Vaitsman é jornalista, tradutora, diretora do Museu Judaico-RJ