23.11.10

Ronaldo Wrobel fala sobre literatura, a propósito do lançamento do livro "Traduzindo Hannah"

(publicada no Jornal do Commercio, Recife, em 02/11. Ronaldo participou semana passada da Fliporto, que este ano homenageou Clarice Lispector).

1- Este é o seu segundo romance. Tanto Traduzindo Hannah como Propósitos do acaso tinham algum pano de fundo histórico por trás. Seria essa a marca da sua literatura, a dependência de algum contexto histórico?

1. Não me considero dependente de contextos históricos, pois também escrevo contos contemporâneos, mas a verdade é que os meus dois romances têm apelo histórico. Talvez isso aconteça porque cresci ouvindo histórias de tios e avós europeus, fugidos do comunismo e do nazismo. Eram histórias épicas, cheias de dramas e esperanças, com cenários incríveis e até trilhas sonoras. Esse clima impregnou minha vida. Dizem que sou um bom contador de histórias, capaz de transformar um relato qualquer numa saga bíblica. Devo isso aos meus parentes, sem dúvida. Adoro romances históricos e, por sinal, estou lendo Equador, de Miguel de Sousa Tavares, uma excelente recriação de época.

2 - A sua família é judia e você já publicou um livro sobre manifestações festivas dos judeus. Que tipo de peso o fato de ser judeu tem para sua literatura?

2. Judeus adoram contar e ouvir histórias, anedotas, sagas, citações. As cerimônias religiosas têm sempre alguma história, que é a parte mais interessante dos ritos. O próprio judaísmo começou com a tradição oral, aquilo que o marketing chama de propaganda boca a boca. “Traduzindo Hannah” é cheio de parábolas judaicas, algumas tradicionais. Uma das parábolas foi contada por uma senhora judia, dona de uma mercearia perto da minha casa, a propósito de uma fofoca contra sua filha. Judeus costumam ter histórias na ponta da língua, quase sempre com uma lição no final.

Não sou religioso nem fechado em circuitos judaicos, mas o judaísmo é mais do que uma religião, é uma cultura cheia de traços laicos. Basta pensar naquele espírito questionador, naquela densidade emocional mostrada por cineastas como Woody Allen e Mel Brooks. Tenho um amigo judeu que é ateu convicto, mas esbanja judaísmo ao falar que Deus não existe. Como? Questão de estilo. Judaísmo não é só o que se diz, mas como se diz.

3 - Ainda dentro desse território, seria possível pensar na existência de uma literatura judaica, ou você não gosta desses rótulos?

3. Acho difícil falar-se em literatura judaica porque o judaísmo é plural e existem escritores judeus totalmente diferentes uns dos outros. Além do mais, ninguém sabe demarcar as fronteiras entre o judaísmo e outras culturas. O povo judeu vive de assimilar e difundir saberes mundo afora. O que é a literatura judaica? Aquela que fala dos judeus? E o estilo, a estrutura do texto, existe alguma forma judaica de escrever? Acho que não. Percebo, isto sim, um núcleo básico do judaísmo que rende ótimas obras de artistas judeus. Os não-judeus tendem a ficar longe desse núcleo, por motivos que merecem uma boa análise.

4 - O tom de Traduzindo Hannah, como o conceito histórico e sua forma de dirigir a trama, parecem isolados dentro da literatura brasileira contemporânea. Ainda dentro desse raciocínio, você não mantém blog ou twitter ou qualquer outra estratégia de comunicação. Você se sente isolado de alguma forma?
4. Não sei se Traduzindo Hannah tem uma estrutura isolada na literatura brasileira. Será? Deixo a resposta para os leitores. Procurei ser autêntico, não diferente ou inovador. E os trabalhos verdadeiramente autênticos podem ser, inclusive, convencionais. Fiz cursos de roteiro para cinema e talvez por isso alguns leitores digam que meus livros são imagéticos, chegando a lembrar das histórias como se fossem filmes. Mas minha matéria prima é a palavra, não a imagem. E muito do que eu escrevo não caberia na linguagem audiovisual, como as reflexões que às vezes ocupam páginas inteiras de "Traduzindo Hannah".

Quanto aos blogs e twitters, preciso aprender a lidar com essas coisas. Não adianta querer me isolar num mundo onde o marketing pessoal dita as regras. As pessoas ficam se apregoando na internet, feito camelôs de si mesmas, contando intimidades, inventando novidades. Não é bem o meu perfil. Para que saber o que eu comi ontem à noite ou qual livro andei lendo nas férias? O que eu tiver que dizer, direi através de meus livros. Gosto muito de dar entrevistas e palestras, mas não me sinto um formador de opinião nem tenho ideias interessantes sobre tudo. Meu trabalho de escritor envolve mais suor e disciplina do que glamour. Além do mais, dá muito trabalho manter um blog, até um perfil no Facebook. E falta tempo porque também sou advogado e prefiro usar as horas livres para ler e criar o próximo livro, o que exige silêncio e pesquisa. Mas tenho pensado no assunto com carinho.

5 - Você já publicou por inúmeras editoras em sua carreira. É difícil para um autor em ascensão se fixar no cenário literário brasileiro?

5. Sim, é muito difícil. O Brasil tem milhões de artistas talentosos sem qualquer projeção. Mas não dá para apontar culpados numa realidade tão complexa. Estive numa editora que recebe cerca de cinco mil originais por mês! Como selecionar, separar o joio do trigo? Impossível. O lado bom é que a internet facilitou o contato entre artistas e público. Na literatura isso é mais verdadeiro porque a internet é um veículo perfeito para a palavra escrita, o que não acontece com as artes plásticas, com o teatro ou com a música. Oficinas literárias e grupos de leitura estão pipocando por aí, no mundo real ou virtual.
 
Outra coisa, com o perdão do óbvio: não existe um único cenário literário brasileiro. O país é uma colcha de retalhos. Há autores regionais ou temáticos com ótima projeção nas suas áreas. Acho que o melhor caminho para o escritor estreante é procurar seu nicho e conquistar cada leitor como se fosse o único. O leitor bem impressionado vai recomendar seu trabalho, lembrar de você, cobrar novidades, apontar seus defeitos e suas qualidades, pegá-lo pelo pescoço e gritar: por que você matou fulana??, o que aconteceu com beltrano?? Ouvir uma coisa dessas é a delícia do escritor. Justifica cada letra que você escreveu.