18.3.11

PAUSA

A falta de tempo tem impedido que eu escreva no blog, de modo que interrompo as postagens. Ao lado, continuem a ver novidades de alguns sites judaicos, assim como o arquivo.

1.3.11

A Formação e a Convivência Multiétnicas no Brasil e o Mito de sua Cordialidade

Reproduzimos abaixo uma das muitas conferêcias em que Moacyr Scliar fala, com a generosidade de sempre, sobre tudo o que o movia como homem, brasileiro, judeu e humanista 

 

SEMINÁRIO CULTURA E INTOLERÂNCIA

SESC Vila Mariana | São Paulo, novembro de 2003
 Moacyr Scliar[1]  

Atender a um convite do Sesc, mais que um prazer, é uma honra, porque esta é uma instituição cujo papel na cultura brasileira já está mais que consolidado.

Antes de vir para esta palestra, dei uma passadinha na exposição do Tico-tico, uma revista que eu lia, ainda na minha infância, para que vocês vejam como sou antigo. Essa revista já vai fazer 100 anos. Fiquei realmente maravilhado com esta exposição, mostrando como essa revista infantil evidenciava toda uma situação cultural.

Ocorre o mesmo com o tema da intolerância. Um tema que remete a uma patologia cultural à qual eu sempre fui particularmente sensível, até pelas minhas próprias origens. Sou filho de imigrantes, meus pais vieram da Rússia. O Rio Grande do Sul é um dos estados que receberam maior contingente migratório naquela fase em que o Brasil abriu seus portos para a emigração que saia da Europa, recebendo alemães, italianos, eslavos, árabes, e também esse grupo de judeus russos que fugiam de uma região convulsionada pelo final da Primeira Guerra Mundial e pela revolução de 1917. Vinham em busca desse verdadeiro paraíso que era o Brasil para eles. Era um projeto de colonização agrícola que começou em 1904, portanto, completará seu centenário - que no Rio Grande do Sul já está sendo lembrado - no próximo ano. Somou-se à saga dos imigrantes no Rio Grande do Sul.

Meus pais chegaram ao Brasil ainda jovens, mas esse projeto já havia dado errado, porque foi implantado numa região inóspita, sem condições para o desenvolvimento da agricultura. Esses colonos foram abandonando suas terras e se dirigindo para as cidades próximas ou para Porto Alegre, que foi o lugar aonde meus pais chegaram, onde nasci e me criei, num bairro que é muito conhecido lá, muito semelhante ao Bom Retiro aqui em São Paulo, o bairro do Bomfim, um bairro típico de imigrantes. As fotos que vejo daquela época me lembram uma aldeia da Europa oriental, as ruas cheias de gente, vendedores ambulantes, casinhas minúsculas, muito pobres, onde a cultura judaica era muito forte. Nasci e me criei dentro dessa cultura. Muito cedo tomei conhecimento dessa questão da minha diferença, de que eu era diferente.

Fiz o que se chamava curso primário na época no colégio do bairro, uma pequena escola fundamental, onde minha mãe, a pessoa a quem devo a minha iniciação na literatura, que me ensinou a amar os livros, a escrever e me educou, era professora. Quando terminei o curso primário, eu teria de continuar num outro colégio. A maior parte dos meninos e meninas do bairro do Bonfim fazia isso em escolas públicas, mas meus pais, por alguma razão que até hoje não descobri - agora é tarde para perguntar, porque eles não estão mais aqui - resolveram me enviar para um colégio católico.

Há um mês, voltei a esse colégio para receber uma homenagem. A direção da escola conseguiu trazer um dos professores que me deu aulas, um homem que me influenciou muitíssimo. Ele era um irmão marista que depois abandonou a carreira religiosa e se tornou um militante na organização do Movimento dos Papeleiros na região da Grande Porto Alegre. Esse homem fez um discurso que me comoveu muito. Ele disse que queria me pedir desculpas, pelo fato de que eu tinha sido tratado com intolerância na aula dele, que eu freqüentei. Isso não correspondia inteiramente à verdade, não cheguei a ser perseguido, nem mesmo discriminado, mas eu tinha, sim, a noção de que eu era uma pessoa diferente, que eu não fazia parte desse grupo que reunia a maior parte dos alunos e que isso teria conseqüências muito sérias.

Por exemplo, eu tinha a clara noção de que estava condenado ao Inferno e que iria queimar em suas chamas por toda a eternidade. A Academia Brasileira de Letras promete a imortalidade, mas tenho certeza de que a imortalidade não chega nem aos pés da eternidade, que deve ser muito mais duradoura e, passada no inferno, muito mais dolorosa do que qualquer imortalidade. Essas eram, é claro, as coisas que correspondiam às minhas fantasias, porque me lembro, por exemplo, que perguntei a um dos professores se eu estava mesmo inevitavelmente condenado ao Inferno. Ele pensou um pouco e me disse que se eu fosse uma pessoa muito boa, honesta e justa, que seria até possível que eu fosse para o Purgatório. Pelo menos havia essa alternativa. Era algo de muito curioso.

Várias coisas aconteciam nessa aula. Eu pensava que era o único aluno de origem judaica. No entanto, havia mais um, mas eu não sabia e não fiquei sabendo por muitos anos, porque esse menino tinha um sobrenome, diferentemente de Scliar, que é um sobrenome claramente estranho, que podia passar por um sobrenome brasileiro ou português. Ele usava esse fato para fazer de conta que não tinha nada a ver com o judaísmo. Ele realmente seguia toda a prática religiosa e eu só descobri o fato anos depois de ter saído do colégio. Havia também um menino que era protestante. Esse menino sofria muito porque, além disso, vivia um dilema familiar: filho de mãe católica e pai protestante, acabou se convertendo. Lembro-me de sua cerimônia de conversão, com todo o colégio reunido no pátio. Pode-se imaginar o sentimento de culpa que se apossou de mim nessa ocasião. Ali estava o rapaz que tinha tido a coragem de se converter, enquanto eu persistia teimosamente nessa adesão à tradição judaica.

Finalmente, havia um menino que era negro, o único negro da aula, que, portanto, também era visto de forma diferente. Houve uma vez em que, um pouco antes de começar uma prova, ele estava estudando. Quando a prova começou, inadvertidamente, ele colocou o livro aberto embaixo da carteira, que tinha um compartimento para guardar a pasta e os livros. Colocou o livro, mas ele estava aberto. No meio da prova, o professor se deu conta de que o menino estava com o livro aberto debaixo da carteira e, sem vacilar, recolheu sua prova. Resolvi dizer que aquilo era uma injustiça, que o menino não estava colando, mas ninguém acreditava, nenhuma das pessoas que estavam ali acreditava que ele fosse inocente, achavam que realmente ele tinha que ser culpado.

Essas foram doses homeopáticas do problema da intolerância. A intolerância não é, no entanto, uma rua de mão única. Freqüentemente, é uma rua de duas mãos. Porque nessa comunidade em que eu vivi, também havia intolerância, numa espécie de reação contra o meio externo. Essas comunidades tendem a se fechar em si próprias. Não apenas a comunidade judaica, o mesmo acontecia com a comunidade alemã e a italiana, formavam-se "quistos", como se dizia naquela época, fechados em si próprios, com regras próprias, nos quais o contato com o exterior era severamente controlado, quando não proibido. Nós tínhamos um vizinho que tinha três filhas, duas delas casaram, como era de se esperar, com rapazes judeus, mas havia uma outra filha, que, coitadinha, era bem feia. Lá pelas tantas, essa moça arranjou um namorado, só que ele não era judeu, era gói, para usar a palavra que designa desde a Bíblia o gentio. O pai não queria que ela casasse, ela casou. Ele não apenas a expulsou de casa e rompeu relações com ela como a considerou morta e rezou a oração dos mortos pela alma dela, como se a filha realmente tivesse deixado de existir. Isso para que se saiba que a intolerância vem tanto de uma parte como de outra.

O Brasil tem uma longa história de intolerância. Parte dessa história estudei nesse livro que se chama "Saturno nos Trópicos", um ensaio sobre a melancolia brasileira. Esse tema me fascina há muito tempo, por várias razões. Porque é um tema literário, em primeiro lugar, um tema social e também um tema médico. A presença dos médicos nessa área é muito grande. O ponto de partida para esse estudo foi o seguinte: o conceito de melancolia, que é um conceito antigo, da medicina grega, era um conceito, ainda que clássico, pouco usado, mas foi subitamente recuperado no começo daquilo que chamamos de Idade Moderna, ou seja, nos séculos 14, 15, 16, séculos que vêem o advento de uma nova ordem política, social e econômica. É uma ordem social que se caracteriza por um progresso muito grande em termos de ciências, de letras, de artes, por uma descoberta de novos lugares, pelo incremento das viagens marítimas, do comércio internacional, por uma busca verdadeiramente desvairada de riquezas e também do prazer, sobretudo o prazer sexual, uma época de relaxamento de costumes, em que a rigidez que caracterizava a Idade Média é abandonada e dá lugar a um contato muito mais livre e franco entre os sexos. A conseqüência disso é que uma nova doença surge na Europa nessa época, a sífilis, que logo se transformou numa epidemia muito mais avassaladora do que é a AIDS hoje em dia, porque a sífilis se transmitia com muito mais facilidade, ainda que não fosse tão letal quanto a Aids. Essa situação era vista pelos filósofos, escritores e intelectuais com muito ceticismo, muito pessimismo, muita melancolia. Melancolia passou a ser atitude dos espíritos superiores, gente que vivia nesse verdadeiro caos político, social e econômico, que tinha, claramente, um componente maníaco. Na verdade, a modernidade começa bipolar, no sentido do termo médico, ou seja, a alternância entre melancolia, que hoje chamamos, do ponto de vista médico, de depressão, e a mania, que é exatamente essa atividade incessante e desenfreada.

O importante é que esse período corresponde também à descoberta do Brasil. O Brasil também nasce sob o signo da tristeza, da melancolia e essa melancolia resulta em grande parte da intolerância. É uma coisa impressionante como o nosso país tem um passado de injustiças terríveis em relação a populações oprimidas. Começamos a história do Brasil com o massacre indígena, um verdadeiro genocídio que foi a morte dos índios, praticada de várias maneiras, inclusive com um antecedente da guerra bacteriológica. Uma das maneiras de dizimar os índios no Brasil era usar a varíola, uma doença extremamente freqüente e contagiosa então. Quando os brancos queriam se apossar das terras indígenas, não estou falando de 1500 ou 1600, estou falando de um período até recente, espalhavam roupas de varíolosos nas trilhas indígenas. Os indígenas vestiam essas roupas, contraiam varíola e morriam como moscas, porque eles não tinham nenhum tipo de defesa contra essas doenças que eram trazidas da Europa. Doenças como a gripe, por exemplo, podiam matar populações inteiras de indígenas, porque eles não tinham defesas orgânicas.

A segunda leva dos oprimidos e perseguidos é representada pelos negros e, de novo, temos uma opressão muito grande. Os negros são trazidos como escravos, não são considerados seres humanos, aliás, o mesmo acontecia com os índios.  Durante muito tempo se discutiu se os índios tinham alma, se eles podiam ser considerados seres humanos iguais aos outros seres humanos. O mesmo acontecia em relação aos negros. As idéias médicas sobre a situação dos negros são impressionantes. Uma delas, por exemplo, é de que a cor escura da pele dos negros resultava de uma doença de pele que se propagava de geração em geração e que dava essa cor "doentia". Escravatura era considerada uma situação normal, mas tentar fugir da escravatura era considerado doença e havia um termo médico para descrever a situação daqueles negros que tentavam fugir da escravidão, "drapetomania", a mania de querer fugir da escravidão. Essa doença era tratada; o tratamento consistia em amputar os artelhos dos pés para os negros não poderem fugir. Isso era feito por médicos. Os doutores nazistas dos campos de concentração já tinham antecedentes entre os médicos que, sobretudo nos Estados Unidos, viveram na época da escravatura.

A atitude da classe médica em relação à questão do mulato era curiosa. Isso aparece em trabalhos da chamada Escola Antropológica da Bahia, uma escola que foi muito famosa no final do século 19, formada por médicos que se dedicavam também à antropologia e a medicina legal. Deles, seguramente, o mais famoso foi Nina Rodrigues, catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia, que fez muitos estudos sobre o mulato. O mulato era visto como um tipo essencialmente patológico. A condição de mulato era uma condição enfermiça, que gerava várias doenças. Duas dessas doenças eram mencionadas: uma era a tuberculose e outra era chamada neurastenia, um termo que surgiu nessa época e que significava fraqueza de nervos. A idéia que mulatos eram pessoas com fragilidade psicológica fazia com que eles fossem ligados à bebida, ao suicídio, à vadiagem, ou seja, eram pessoas intrinsecamente patológicas.

Essas idéias perduraram por muito tempo. A pergunta que se pode fazer - e essa é uma pergunta importante - é a seguinte: será que, realmente, os mulatos tinham, por exemplo, mais tuberculose? Provavelmente tinham. Mas, por que? Porque eram mulatos ou porque viviam em condições em que a tuberculose se transmitia mais facilmente? Ou, ainda, porque eram pobres e viviam em tugúrios cheios de gente, onde o bacilo da tuberculose podia facilmente se transmitir? Muito provavelmente, era disso que resultava a tuberculose dos mulatos e também da opressão a que eles estavam submetidos que resultavam as condições psicológicas deles. Quer dizer, o que temos aqui é uma inversão de causa e efeito, o que é efeito passa a ser causa e vice-versa. Isso é típico do raciocínio intolerante. O raciocínio intolerante tende a fazer aquilo que se diz em inglês "to blame the victim", a vítima é que é culpada pelas coisas que lhe ocorrem. Então, o mulato, por ser mulato, é culpado de ter tuberculose, é culpado de ter neurastenia e assim por diante.

Não é preciso ter dúvida de que intolerância é uma coisa que está presente no nosso mundo. Eu vinha no avião, lendo um suplemento do The New York Times.  O artigo que lia era sobre o massacre dos armênios pelos turcos em 1915, um dos episódios mais sombrios da história da humanidade, em que 1,5 milhão de pessoas foram assassinadas com muita crueldade e de uma forma verdadeiramente dantesca. Até hoje esse massacre não é reconhecido como genocídio, embora os descendentes de armênios tenham se esforçado para que isso ocorresse. Há um problema político. A Turquia é uma aliada do Ocidente e o governo turco não quer que esse episódio histórico seja rotulado como um genocídio, ainda que historiadores turcos estejam de acordo e confirmem o fato. Como isso poderia implicar numa acusação, mesmo que se refira a um aspecto do passado, esse fato é escamoteado. Este é um aspecto que eu queria frisar, o fato da intolerância muitas vezes ser mascarada. Outro ponto que eu acho importante é o seguinte: qual é, na verdade, a raiz da intolerância?

Tomemos o caso que mencionei, dos judeus. Qual é, na verdade, a origem do anti-semitismo? Será que a origem do anti-semitismo está ligada ao fato de que, segundo conta o Novo Testamento, judeus reunidos diante de Pôncio Pilatos pediram a morte de Cristo? Será que é isso? Poderia ser isso, mas não deixa de ser surpreendente o fato de que o próprio Jesus Cristo era judeu, que seus discípulos eram judeus, que ele pregava para judeus e que os judeus estavam com ele também no momento de sua morte. Quer dizer, isso significa sim, rotular de judeus apenas aqueles que cometeram o que até hoje recebe o nome de judiaria, significa realmente uma discriminação. Mas não creio que a origem do anti-semitismo ou do antijudaísmo, que é o termo mais indicado, esteja relacionada a esse episódio. Esse episódio foi usado dentro de um mecanismo de poder e é essa a tese que eu gostaria de deixar aqui: a intolerância é algo que está a serviço de um mecanismo de poder - poder político, poder social e poder econômico. Esta é uma noção muito importante.

Quando é que o sentimento judaico cresce mais? Na Idade Média, particularmente, em seu final. O que ocorreu no final da Idade Média? Qual é o papel que os judeus desempenham no final da Idade Média que os caracteriza como um grupo odiado e menosprezado? A economia medieval era uma economia muito simples. Basicamente, havia duas classes: uma que era dominante, dos senhores feudais e também a classe clerical; de outro lado havia os servos, que trabalhavam na terra, porque esta era uma economia basicamente agrícola, ou seja, que girava em torno da troca de mercadorias, do escambo da produção agrícola por outros produtos nas feiras. Porém, os senhores feudais também precisavam de dinheiro, para financiar expedições guerreiras, para adquirir bens de consumo luxuosos, para a construção de castelos e assim por diante. Alguém precisava ser o depositário desse dinheiro, gerir esse dinheiro, emprestá-lo, movimentá-lo. Quem iria fazer isso? Dinheiro era considerado, naquela época - e esse pensamento aristocrático acompanhou o Brasil e a história do Brasil por muito tempo - uma coisa suja. Gente "fina" não tocava em dinheiro. Apenas os impuros que podiam tocar em dinheiro.

Havia, no entanto, um grupo que podia mexer no dinheiro, o dos judeus. Os judeus se tornaram, então, "movimentadores" do dinheiro, os usurários. Isso era uma coisa extremamente conveniente para o sistema feudal, porque o senhor feudal pedia dinheiro emprestado, o usurário emprestava e cobrava juros, porque havia um risco grande, não só do dinheiro, o risco de sua própria cabeça. Porque quando o senhor feudal não podia pagar o empréstimo, tudo o que ele fazia era desencadear um massacre de judeus, em que os usurários eram mortos e a dívida automaticamente se extinguia. O que havia era uma verdadeira queima de arquivo, porque o arquivo estava na cabeça do usurário.

Essa situação persistiu até o final da Idade Moderna, quando, de repente, surgem os bancos, o que muda completamente o critério do empréstimo a juros, que passa a ser uma atividade nobre. Os bancos - casualmente eu estava visitando um antigo banco em Porto Alegre - eram estabelecimentos gigantescos, imponentes, luxuosos, verdadeiros templos do dinheiro. Não era mais aquele usurário de nariz adunco, com os dedos em garra. Agora, era gente fina cuidando do dinheiro. Com isso, o empréstimo a juros passou a ser uma atividade perfeitamente tolerável. Qualquer um de nós vai hoje ao banco e tira dinheiro, mas nenhum de nós pensa em desencadear um massacre das pessoas que estão lá, mesmo porque aquelas pessoas são funcionários, não têm muito a ver com isso.

Esse exemplo mostra que, na verdade, a intolerância pode existir subliminarmente, em embrião, mas ela só ganha momento, só ganha força quando está a serviço de um mecanismo de opressão, sobretudo do ponto de vista econômico, social ou político.

Um exemplo muito óbvio, muito evidente, é o dos irlandeses. Temos na Irlanda, há séculos, uma luta entre católicos e protestantes. Será que alguém acredita que essa luta tem a ver com o fato de que um grupo pratica uma religião de tal maneira e outro grupo pratica a religião de outra maneira? Um grupo entra num tipo de igreja, outro grupo entra em outro tipo de igreja. Será que alguém acredita  que as pessoas se matam por causa disso? Não é por isso que as pessoas se matam. Tanto é verdade que nos Estados Unidos, por exemplo, há irlandeses católicos e protestantes que convivem tranqüilamente.

É que, na Irlanda, católico era pobre e protestante, rico. O que havia era uma cisão entre ricos e pobres. Mas, por outro lado, os católicos eram - e são ainda -um contingente populacional importante. Essa intolerância está a serviço de manter um status quo, uma situação de domínio.

Espero ter lançado algumas inquietações a respeito desse tema, que acho muito importante, um tema cuja magnitude não podemos diminuir porque, realmente, nesse mundo em que vivemos, podemos ver a qualquer momento gente morrendo por causa da intolerância e da perseguição e dar-se conta disso é uma tarefa da nossa época. Precisamos esclarecer, mostrar para as pessoas que o raciocínio intolerante é, como disse no início, uma patologia social, uma doença psicológica que acomete grupos humanos inteiros e que se manifesta em violência, discriminação e sofrimento inusitado. Muito obrigado.


[1] Autor de 67 livros em vários gêneros, com obras publicadas em diversos países com repercussão na crítica. Detentor dos prêmios Academia Brasileira de Letras (1968), Joaquim Manuel de Macedo (1974), Cidade de Porto Alegre (1976), Brasília (1977), Guimarães Rosa (1977), entre outros. Foi professor visitante na Brown University, Department of Portuguese and Brazilian Studies e na Universidade do Texas em Austin. Colunista dos jornais Zero Hora, de Porto Alegre, e Folha de São Paulo. Médico especialista em Saúde Pública e Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública.

28.2.11

Colegas da literatura e de ZH relembram convivência e homenageiam Moacyr Scliar

"Moacyr Scliar era um judeu universal. Era um artista muito ligado à questão judaica, mas com a capacidade de reconhecer o outro, de se ver no outro e encontrar nele um idêntico, o que fazia dele um ser humano extraordinário."
Tarso Genro, governador do Estado

"Estou muito triste com as mortes do Scliar e do Benedito Nunes (filósofo e escritor paraense, também morto neste domingo). Perdi dois grandes amigos em um dia. Eu os via pouco, via mais o Scliar. Participamos de alguns eventos literários juntos. O primeiro deles foi em Zurique, na década de 90: um encontro de escritores brasileiros na Suíça. Desde então, a gente, de vez em quando, se encontrava em eventos literários. Ele participava muito mais do que eu, tinha essa paixão pelo público, estava em todas. Eu brincava dizendo que era preguiçoso e não gostava de viajar tanto.

Ele transitou por todos os gêneros, foi escritor de uma obra multifacetada, importante para a literatura brasileira. Gosto dos contos dele, que às vezes têm até mais força do que os romances. Foi um jornalista cultural e um cronista exemplar. Eu o admirava muito.
Sempre foi uma pessoa muito generosa com os escritores. Nesse mundinho da literatura, há muita vaidade, uma vaidade doentia, como talvez exista em todas as profissões. O Scliar estava acima disso. Quem é generoso não precisa ficar se afirmando.
Não achava que ele iria embora agora, sinceramente. Achava que iria se recuperar. Foi uma grande perda. A morte é sempre um escândalo."
Milton Hatoum, escritor amazonense, autor de Dois Irmãos e Cinzas do Norte

"Ele fez a orelha do meu terceiro livro, Anotações Durante o Incêndio (lançado em 2000). Não me conhecia, não sabia quem eu era. Leu e, em três dias, estava pronto, por pura generosidade. Depois descobri que ele era generoso para tudo, sempre disponível.
Quando eu era diretora do Instituto Estadual do Livro (IEL), se faltasse um autor para atender a uma escola lá num cafundó qualquer, ele ia, não importava onde. Era um entusiasta da literatura, um amante da vida. Muito grato ao Brasil, ao Rio Grande do Sul — foram esse país e esse Estado que acolheram a gente dele, a nossa gente. Ele se sentia profundamente gaúcho. Era sinceramente gaúcho e sinceramente judeu, embora não fosse reliogioso.
Perdemos um homem maravilhoso, um ser humano do mais alto quilate, um diamante. A gente perdeu um homem bom, um cara honesto, reto, digno, um pai maravilhoso."
Cíntia Moscovich, escritora gaúcha, autora de Duas Iguais e Por que Sou Gorda, Mamãe?

"Convivi com o Moacyr em dois locais diferentes. Em ambos, usava suas inquietas mãos. Na Redação de Zero Hora, onde transportava para o computador sua consagrada obra literária, que o levou à Academia Brasileira de Letras e a prêmios nacionais e internacionais. O outro local foi o ginásio de esportes da Associação Cristã de Moços (ACM), onde deixou uma obra que também o imortalizou. Tal como no livro O Exército de Um Homem Só, brindava todos os anos a nós, atletas de basquete da turma do meio-dia, com uma única cesta de três pontos — o que nos levou a chamá-lo de 'O Homem de uma Cesta Só'. Como essa façanha acontecia nos finais de ano, após quase uma centena de tentativas — número semelhante ao total de livros de sua admirável obra —, foi cognominada de 'A Cesta de Natal', sendo que esses primeiros três pontos estão 'imortalizados' nos dizeres pintados no piso da quadra, descrevendo o certeiro arremesso no local do inédito acontecimento, com tinta indelével para que, mesmo na ausência, lembremos para sempre a sua festejada Cesta de Natal."
Marco Aurélio Carvalho, chargista de Zero Hora

"Era um dos escritores mais queridos da literatura brasileira. Não só por causa da obra, cuja importância é indiscutível, mas também pela generosidade com que sempre tratou colegas, leitores, editores, jornalistas."
Michel Laub, escritor gaúcho, autor de O Segundo Tempo

"Gostava muito do Scliar. A leitura de O Centauro no Jardim  foi um impacto para mim. O livro me marcou profundamente como um novo caminho para a literatura brasileira. Daí para a frente, fui acompanhando todos os seus livros. A Majestade do Xingu é um romance perfeito. Acabei de ler Eu vos Abraço, Milhões. A fase final dele, bíblica, eu achava muito interessante. Ele internacionalizou a literatura brasileira. Era um herdeiro do estilo do grande narrador, do contador de histórias, que ele foi mais do que ninguém.
Costumava encontrá-lo em feiras de livro. A última vez foi em Ribeirão Preto, em agosto. Era sempre uma pessoa extremamente acessível, gentil. Um tempo antes, nos vimos em um hotel no Rio, onde estávamos hospedados para um evento. Tomamos café da manhã juntos. Ele olhou para o meu prato e disse: 'Bá, tchê, que frugal que tu és' (risos). Como médico, achou a minha alimentação ótima, deu nota 10. Anos atrás, éramos ambos jurados do prêmio Portugal Telecom de Literatura. Um dia, brincou: 'Agora vou me alimentar. Eu nem sei por que vou comer, já que eu sou imortal'. Só tenho doces lembranças dele."
Cristovão Tezza, escritor catarinense radicado no Paraná, autor do multipremiado O Filho Eterno

"De todas as lembranças que Scliar nos deixa, a mais forte é a da sua capacidade incomparável de trabalho. Se o editor de qualquer área precisasse de um texto de qualidade para apoiar uma matéria sobre os mais diversos assuntos recorria a ele, a sua lucidez de analista e a seu conhecimento enciclopédico. Não tenho notícia de que alguma vez tenha dito não. As duas perguntas que fazia eram sempre as mesmas: em quanto tempo precisava entregar a tarefa e qual era o tamanho do texto.
Não é de se estranhar, pois, que nesses anos todos de ZH ele tenha sido presença regular no Segundo Caderno, na Opinião e no Vida e colaborador bissexto na Política, na Geral e no Mundo, além de dar palpites sobre basquete, o esporte que praticava, e o Cruzeiro, seu time do coração.
Nós aqui vamos sentir saudade do Scliar. Ainda não nos acostumamos com a ausência dele neste início de 2011. Como é período de férias, uns chegam, outros saem e a gente tem a impressão de que em março nos reencontraremos todos. Antes que março chegasse, o cavalheiro Scliar nos deixou no início desta madrugada. A redação de ZH está mais pobre."
Rosane de Oliveira, editora de Política e colunista de Zero Hora



14.1.11

Destruição, ontem e hoje

O alemão Anselm Kiefer, nascido em 1945, representa como poucos artistas contemporâneos o buscado, mas difícil de atingir, equilíbrio entre imagens poderosas e análise crítica. Sua obra não deixa de nos fazer ver como a humanidade pode ser desumana ao destruir pessoas e coisas...Pintor, escultor e autor de instalações, circula pelo território da história e da identidade e produz impacto usando materiais diversos (óleo, terra, areia, madeira, matéria orgânica). Há muita coisa dele no youtube, inclusive o vídeo abaixo. Alguns críticos o chamam de épico.


Aprendendo Judaísmo a partir de Giffords


(Editorial JPost. 10/01/2011, tradução de Miriam Halfim)

A despeito de nosso desejo por uma definição universalmente aceita, não se pode ignorar uma realidade: muitos não judeus são mais judeus do que nossos patrícios judeus.

Enquanto nos juntamos em preces pelo rápido e completo restabelecimento da deputada Gabrielle Giffords, não se pode deixar de observar quão magnificamente a Congressista Democrática do Arizona serviu – e, temos fé, continuará a servir – como modelo de desempenho judaico.

Foi seu “sentido dos valores judaicos sobre o modo como tratamos o estrangeiro” que deu a Giffords a compreensão a respeito da profundamente dividida questão dos direitos dos imigrantes ilegais em seu Estado vizinho, segundo Josh Protas, ex-diretor do Conselho de Relações da Comunidade Judaica de Tusconarea. Ao mesmo tempo, ela não perdeu de vista as preocupações de seus colegas Constituintes quanto à segurança diante da afluência desordenada de estrangeiros ilegais.

Talvez as coisas de devam ao seu conhecimento dos desafios da defesa de Israel. Como deputada do 8º Distrito no sul do Arizona, Giffords teve de lidar com as disparatadas opiniões políticas da liberal Tucson e de suas terras rurais. A estratégia eminentemente judaica que ela usava visava ouvir opiniões variadas. De fato, foi num desses exercícios de abertura intelectual – durante um de seus projetos “O congresso na sua esquina”, evento realizado na entrada de um shopping em Tucson – que a força de Gifford como atenta jurista foi vilmente explorada, tornando-se, com o puxar de um gatilho, em sua trágica vulnerabilidade.

O próprio judaísmo de Gifford pode ter sido um motivo para o atentado, segundo um memorando do Departamento Americano para Segurança da Pátria. Jared Loughner é tido como alguém que manteve vínculos com a Renascença Americana, uma organização anti-governo, anti-imigração, anti-sionista e Anti-Semita. O memorando observa que Giffords é a primeira mulher judia eleita para um alto posto no Arizona e que o alegado anti-semitismo de Loughner tem sido considerado um possível motivo.

Em termos judaicos estritos, Giffords nem mesmo é considerada judia. Seu pai é judeu, mas sua mãe é uma cientista cristã.

Sua genealogia não a impediu de dizer, em 2006, “Em minha família, se você quer ver algo realizado, encarregue do assunto as parentes judias. Mulheres judias, de modo geral, sabem como concretizar as coisas.”

Segundo a Associação Judaica de Tuscoranea, seu avô, Akiba Hornstein, mudou seu nome para Giffords após mudar-se de Nova York para o Arizona “em parte porque não queria que seu judaísmo se tornasse um problema num território desconhecido”. Talvez o visceral instinto de sobrevivência de seu avô tivesse alvo certo. O atentado certamente levanta preocupações sobre um anti-semitismo renovado (e sobre a natureza altamente polarizada do discurso político na América de hoje).

Porém o ataque, que enfatizou os nobres e muito judaicos traços pessoais de Giffords, também lança luzes sobre a mudança na natureza da identidade judaica na América. Uma resposta cada vez mais inclusiva para a pergunta “Quem é judeu?” surgiu nos últimos anos. Em parte, como resultado da decisão de 1983 do Movimento Reformista de reconhecer a descendência paterna, em vez de apenas a materna. Essa decisão, que reconhece Giffords como uma judia completa, facilitou a integração da Congressista com sua sinagoga Reformista local, a Congregação Chaverim (Companheiros), quando ela começou a abraçar o Judaísmo ativamente, após uma transformadora viagem a Israel em 2001.

Mas a ampliação da definição de Judaísmo não se restringe ao Movimento Reformista. Uma tendência similar está varrendo o Judaísmo conservador, como o Dr. Adam Ferziger, Antigo Membro do Centro Rappaport de Pesquisa sobre Assimilação da Universidade Bar-Ilan observou em um recente artigo no jornal de Estudos Judaicos de Oxford. Em “Entre Israel Católica e Israel K’rov (amigos de Israel): Não judeus nas Sinagogas Conservadoras (1982-2009), Ferziger mostrou que nos termos estritos judaicos (judeu pela linha materna) a prole não judia de casamentos mistos não era mais excluída como membro ou da vida ritual ativa nas Congregações Conservadoras Americanas. Tal mudança de política deve-se, em parte, às taxas sem precedentes de casamentos mistos ocorridos nas últimas décadas do século XX. Uma outra possível razão pode ser que mais e mais pessoas como Giffords tenham feito uma escolha consciente de se identificar como judeus, sem entretanto terem a intenção de se converterem.

Como era de se esperar, a Lei do Retorno de Israel acomoda esta complexa realidade judaica ao garantir cidadania automática a pessoas como Giffords, seu marido e sua prole. Críticos da Lei do Retorno poderiam reclamar que ela estendeu cidadania a mais de 300000 ex-imigrantes da antiga União Soviética que não são judeus no sentido estrito. Mas pode ser aceito que se exclua estes “não-judeus” apesar do fato de que a vasta maioria está totalmente integrada na sociedade israeli, serve ao Exército do país e se torna cidadão produtivo? É possível excluir Giffords, outra “não judia” que é tão conscientemente judia?

Com todo o nosso desejo de uma definição universalmente aceita sobre “Quem é judeu?” que possa unificar o povo judeu, não podemos ignorar a complicada realidade: muitos “Não-judeus” são muito mais judeus do que seus companheiros “judeus”. A Congressista Giffords é uma delas

11.12.10

LOGOCAUSTO, poema de Leandro Sarmatz

Uma língua de mortos. Idioma anti-segredo, a sibilar no espelho
seu eco de cova no indo-europeu ainda.
Todas aquelas bocas costuradas, milhões de bocas e mais nenhuma.
Onde haverá céu para suportar tantas vozes elevadas?

Onde encontrar a malícia, aquela impertinência duradoura?
(Luz do leste reprojetada em tumbas: sintaxe que se sente
em casa. Expulsa
e vai: expulsa.) 

Palavras não são coisas nem pessoas. 
São um nada, uma piada, uma praga, um lamento surdo
um exílio.

E essa morte infinita, multiplicada, 
boca contra boca ouvido contra ouvido
boca e olvido — verme, terra e vernáculo. 

Vozes submersas: e eu petrificado, gaguejando minha mudez-cimento.
Uma calma forjada: porque se eu soubesse conversar com as sombras,
se eu mastigasse as palavras, e delas um suco que não fosse áspero escorresse abrindo os diques da memória,
irrigando os rios-palavras,
fertilizando campos do idioma — 
aí sim: eu estaria mais só do que já estou.

 [Logocausto, Leandro Sarmatz. Editora da Casa, 2009]

 

Há muitas noites na noite de Tendler e Gullar

A videoinstalação Há muitas noites na noite, do cineasta Silvio Tendler, em cartaz no Oi Futuro de Ipanema, foi prorrogada até 30 de janeiro de 2011. O projeto é uma homenagem ao Poema sujo, a polêmica obra do premiado escritor e ensaísta Ferreira Gullar, um dos fundadores do neoconcretismo, que completou 80 anos no último dia 10 de setembro.

 
No espaço, o cineasta concebeu um café literário, que funciona como work in progress para os dois próximos projetos de Tendler, que incluem o desafio de levar o projeto homônimo para a TV e para o cinema. Inaugurada no dia 7 de novembro, a mostra conta com sessões especiais, nas quais atores caracterizados de garçons passeiam performaticamente entre as mesas, recitando poesias e oferecendo um cardápio literário. Maria Bethânia, Osmar Prado, Zeca Baleiro, Ziraldo, Walter Carvalho, Amir Haddad, Camila Pitanga, Zuenir Ventura, Edu Lobo e Alcione são algumas das personalidades que fizeram a leitura dos poemas exibidos na exposição.
 

Neste ano, em comemoração aos 80 anos, Gullar lançou um novo livro de poemas, Em alguma parte alguma, depois de 11 anos desde a edição de Muitas vozes, em 1999, pela editora José Olympio. Além disso, publicou Zoologia bizarra, um livro com suas colagens a ser lançado pela Casa da Palavra.

1.12.10

Para Sempre Perlman

De Marcel Gottlieb, recebemos a mensagem.  
Segue abaixo a belissima cronica de meu amigo Clóvis Marques (http://opiniaoenoticia.com.br/cultura), um monumento no jornailsmo musical de nosso pais. Obrigado, Clóvis - os amantes da musica desta cidade agradecem !!!

Para sempre Perlman

Perlman dá a impressão de um espírito alerta, o que se traduz no brilho do olhar e no sorriso matreiro. Por Clóvis Marques

22/11/2010
Itzhak Perlman excursionou estes dias pelo Brasil com seu violino de sonho. Nós, os adoradores de sua arte inconfundível, aguardávamos ansiosos e um pouco temerosos: será que a idade pode comprometer o poder de sedução de um violinista?
Alguém lembrou, no recital do dia 15, no Teatro Municipal do Rio, que Yehudi Menuhin passou maus bocados na etapa mais avançada da carreira. Corria a década de 1980, quando ele ia além dos 70 de idade, e não eram raros os episódios de entonação duvidosa, notas saltadas, pressão inconstante do arco sobre as cordas, resultando em sonoridades estranhas…

Os pianistas, comentou meu interlocutor, evocando um concerto do velho Emil Gilels, avançam mais impolutos no tempo. Mas nem sempre: de minha parte, lembro do recital de um Claudio Arrau octogenário que me deixou perplexo com a mistura de soberana musicalidade, imperial convicção e fragilidade física…

Mas Perlman está com 65 apenas. Além da cabeleira prateada, sua figura não tem mais, é verdade, a robustez de outros tempos – ou da última vinda ao Brasil, em 1998. Ele está mais magro e parece um homem de idade. Quando se dirige ao público, contudo, a voz é o mesmo baixo ressoante que lhe rendeu participação especial no papel do carcereiro na gravação da Tosca de Puccini feita em 1981 por James Levine, com Scotto e Domingo. E Perlman também dá a impressão de um espírito alerta, o que se traduz no brilho do olhar e no sorriso matreiro.

Menuhin se baseava em uma filosofia e uma prática budistas para ambicionar em sua arte o equilíbrio corpo/mente de um arqueiro zen, o que não foi suficiente para eximi-lo das descontinuidades da velhice no trato do violino – nem da acusação de praticar menos do que deveria a partir de certa idade…
Perlman, de sua parte, tem uma concepção integrada da arte musical. Perguntei-lhe certa vez, numa entrevista, se a beleza do som, a adequação estilística, a fidelidade ao compositor ou a liberdade pura e simples é que mais importava ao tocar. "Nunca penso em termos de aspectos diferentes", respondeu ele. "Considero que o mais importante é fazer música, em seu sentido mais profundo. E o violino ajuda, pois vibramos com ele, o instrumento e o músico são uma coisa só."

É a mesma inteireza que constatamos, em seu caso, na fusão inconsútil de técnica e arte, expressão e sentimento, concentração e comunicação. No recital do outro dia, foi mais uma vez especial constatar como a variedade das peças – sonatas de Mozart, Strauss e Debussy – era observada, honrada e engrandecida sem prejuízo das características tão caras desse intérprete generoso e doador.

Tais características mudaram, claro. Talvez a sonoridade dourada e caramelada que o distinguiu sempre já não se projete com uma majestade tão plena e constante (ressalvo que eu estava a uma distância maior que a habitual). Aquilo que há dez ou vinte anos nos parecia vertiginosa insolência da perfeição (sonora, técnica, musical, expressiva, estilística), com o corolário de uma aparente falta de espontaneidade ou até vibração, já não se impõe com o mesmo fulgor. Perlman estaria menos altivo, mais próximo.

Mas a pureza tonal, a sutileza do vibrato e a extensão do legato, a plenitude do canto e a agilidade que se faz íntima com a música estavam lá, maravilhosas na delicadeza quase "neutra" de Mozart, na afirmação varonil dos temas imperiosos e das texturas quase orquestrais de um Strauss ainda juvenil, na linearidade diáfana e inquieta de um Debussy alquebrado pelo sofrimento no fim da vida.

É comum um artista do seu quilate – e mesmo, diria, de sua condição já mítica – ser acompanhado por um profissional de alto coturno que não se alça aos mesmos níveis de transcendência. O próprio Perlman, no entanto, já nos surpreendera aqui, da outra vez, com um pianista – Samuel Sanders, seu acompanhador durante cerca de três décadas – que entrava também com um manancial de individualidade e invenção. Alguns melômanos brasileiros se lembrarão do magnífico artista de pleno direito que foi, acompanhando Teresa Berganza na mesma época, o pianista Juan Antonio Alvarez Parejo.

Desta vez Perlman percorre o mundo (foi também ao Chile, seguindo para Japão e Coreia, depois de ter solado na abertura da temporada da Filarmônica de Nova York) com o pianista Rohan de Silva, originário de Sri Lanka, que pode não ter esbanjado sutileza (sobretudo no Mozart, quando ambos ainda estavam esquentando), mas não negou fogo no constante jogo do toma-lá-dá-cá com o parceiro.

Para encerrar o recital, um rosário de extras e bombons que vale, aqui, enumerar: uma Siciliana e rigaudon de Fritz Kreisler parodiando estilos antigos; a miniatura Ao pé da fogueira, do mineiro Flausino Vale (1894-1954); um tema da trilha do filme A lista de Schindler, composta por John Williams e consagrada por Perlman; um Caprice de Wieniavsky; o Tango de Albenis adaptado por Kreisler; a Dança húngara nº 1 de Brahms transcrita por Joseph Joachim e, para não deixar de terminar com todos os fogos de artifício, a Ronde des lutins de Basini.

E todos foram para casa felizes (Clóvis Marques - nov 2010)
***
Alguns grandes momentos de Itzhak Perlman (nascido em Tel-Aviv, Israel 1945), recomendados por Gottlieb:

Pablo Sarasate: "Zigeunerwiesen":
http://www.youtube.com/watch?v=wEmbFSiJzEQ
 John Williams: "A Lista de Schindler" - motivo principal:
http://www.youtube.com/watch?v=ueWVV_GnRIA
 Tchaikovsky: Valse Scherzo Op.23:
http://www.youtube.com/watch?v=8La4ix318GE
 Bach: Partita No. 3 em mi menor - Gavotte - aos 13 anos, trecho de um filme de Christopher Nuppen:
http://www.youtube.com/watch?v=DNo6AD9z1WQ
 9. Halvorsen: Passacaglia sobre um tema de Haydn - com Pinchas Zukerman                                              
http://www.youtube.com/watch?v=pAKA3rLENGU
Tocando Musica Klezmer:
http://www.youtube.com/watch?v=DkmFgQ9fM94&feature=related
Gardel: Por una Cabeza:
Perlman (com John Williams regendo):  http://www.youtube.com/watch?v=kigoRVhyaf4&feature=related
Filme - "Perfume de Mulher" (1992):  http://www.youtube.com/watch?v=dBHhSVJ_S6A&feature=related
Antonio Vivaldi: Concerto em re maior para 2 violinos - com Isaac Stern:
http://www.youtube.com/watch?v=76RnSbRyUqA
Para finalizar - "algumas coisas são fáceis para voce e dificeis para mim..." - MARAVILHOSO:
http://www.youtube.com/watch?v=z3richcoCUI&feature=related

25.11.10

Ahmadinejad não disse o que disse!

Não adianta explicar, explicar, explicar, explicar, tem gente que não quer entender mesmo! Em entrevista a um grupo de blogueiros que lhe são simpáticos, o Presidente Lula declarou ontem, sobre a posição de Mahmoud Ahmadinejad a respeito do Holocausto (que o iraniano negou reiteradamente): "Ele explicou que o que ele quis dizer, na verdade, era que morreram 70 milhões de pessoas na Segunda Guerra, e parece que só morreram judeus".


Os judeus são mesmo uns exagerados, diria um ouvinte ignorante ou desavisado...

Enquanto Lula fazia tais apreciações aparentemente banais, mas que embutem uma perversidade, a jornalista norte-americana Roxana Saberi era recebida na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Ela ficou presa por cem dias no Irã e agora anda pelo mundo em campanha contra o desrespeito aos direitos civis e humanos no país. Pediu para ser recebida pelo Presidente, mas não o foi; o tema Irã está blindado pela assessoria internacional do governo.

Por esse tipo de coisa é que a gente aplaude iniciativas como, entre outras, a da socióloga Helena Lewin,que está levando estudos do Holocausto aos professores das escolas do Estado do Rio.

Tempo de Chanuka


23.11.10

Noel Rosa e o judeu da prestação

Celebra-se o centenário, em 2010, de um dos grandes gênios brasileiros, o compositor Noel Rosa, que morreu antes de completar 30 anos. Ele foi um cronista atilado de sua época (em que ainda não havia a mania do politicamente correto) e dos costumes cariocas, e falou de tudo e de todos, inclusive dos judeus da prestação, os "klientelchik". O trecho abaixo está no livro Judeus da Leopoldina, edição de 2007 do Museu Judaico do Rio de Janeiro:
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
A imagem estereotipada "estigmatiza as diferenças" ao circular como verdade social, no dizer de Roland Barthes. E o "judeu da prestação" tornou-se tão visível no cenário urbano brasileiro, entre as décadas de 1920 e 1950, que o estereótipo volta e meia se repetia, de forma mordaz, em piadas, em caricaturas na imprensa e na música popular. Em São Paulo, o compositor Adoniran Barbosa criou um conhecido personagem, o "judeu da prestação Moisés Rabinovic". No Rio, o compositor Noel Rosa incluiu a figura em sambas satíricos como São Coisas Nossas e Quem dá mais.

Em Quem dá mais, ao traçar o que seria um leilão das maiores riquezas brasileiras -- a mulata, o samba e o violão -- Noel diz:

"Quem dá mais.../Por um violão que toca em falsete/ Que só não tem braço, fundo e cavalete/ Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio/ foi posto no prego por José Bonifácio?/ Vinte mil réis, 21 e 500, 50 mil réis! / Ninguém dá mais de 50 mil réis? / Quem arremata o lote é um judeu, / Quem garante sou eu, / Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...) (* 1)  

Como outros letristas, Noel às vezes recorreria a simplificações, porém nunca teve os judeus como alvos preferenciais. Observador social arguto que circulava com desenvoltura entre Vila Isabel, o centro e os subúrbios, não podia deixar de observar os prestamistas percorrendo as ruas com suas pesadas malas, seus pesados embrulhos, vendendo, vendendo, vendendo... Assim, nada mais natural que incluí-los em São Coisas Nossas:

"...Morena bem bonita lá da roça, / Coisa nossa, coisa nossa. / Baleiro, jornaleiro,/ Motorneiro, condutor e passageiro, / Prestamista e vigarista/ E o bonde que parece uma carroça, / Coisa nossa, muito nossa! (...) 

Em Cordiais Saudações, samba epistolar falando de dívidas, Noel atira para todos os lados e mira também no cobrador judeu:

"...Eu hoje sinto saudades/ daqueles dez mil réis que te emprestei. /Beijinhos no cachorrinho, / Muitos abraços no passarinho/ Um chute na empregada, / Porque já se acabou o meu carinho./A vida cá em casa está terrível /Ando empenhado nas mãos de um judeu/ O meu coração vive amargurado / Pois minha sogra ainda não morreu (tomou veneno, e quem pagou fui eu)..."

___________________________________________________________________________________________________ 
NOTA
1 - "Este verso é um dos dois que valerão a Noel, muitos anos depois de sua morte, a acusação de anti-semita. Mas quem se lembrar do que representou a figura do prestamista em sua infância (e de como judeu era a denominação genérica, ainda que imprópria, daquele tipo de comerciante) sabe o que ele está querendo dizer" (Máximo, João, e Didier, Carlos, Noel Rosa, uma biografia, Editora Unb, pág. 167).

Ronaldo Wrobel fala sobre literatura, a propósito do lançamento do livro "Traduzindo Hannah"

(publicada no Jornal do Commercio, Recife, em 02/11. Ronaldo participou semana passada da Fliporto, que este ano homenageou Clarice Lispector).

1- Este é o seu segundo romance. Tanto Traduzindo Hannah como Propósitos do acaso tinham algum pano de fundo histórico por trás. Seria essa a marca da sua literatura, a dependência de algum contexto histórico?

1. Não me considero dependente de contextos históricos, pois também escrevo contos contemporâneos, mas a verdade é que os meus dois romances têm apelo histórico. Talvez isso aconteça porque cresci ouvindo histórias de tios e avós europeus, fugidos do comunismo e do nazismo. Eram histórias épicas, cheias de dramas e esperanças, com cenários incríveis e até trilhas sonoras. Esse clima impregnou minha vida. Dizem que sou um bom contador de histórias, capaz de transformar um relato qualquer numa saga bíblica. Devo isso aos meus parentes, sem dúvida. Adoro romances históricos e, por sinal, estou lendo Equador, de Miguel de Sousa Tavares, uma excelente recriação de época.

2 - A sua família é judia e você já publicou um livro sobre manifestações festivas dos judeus. Que tipo de peso o fato de ser judeu tem para sua literatura?

2. Judeus adoram contar e ouvir histórias, anedotas, sagas, citações. As cerimônias religiosas têm sempre alguma história, que é a parte mais interessante dos ritos. O próprio judaísmo começou com a tradição oral, aquilo que o marketing chama de propaganda boca a boca. “Traduzindo Hannah” é cheio de parábolas judaicas, algumas tradicionais. Uma das parábolas foi contada por uma senhora judia, dona de uma mercearia perto da minha casa, a propósito de uma fofoca contra sua filha. Judeus costumam ter histórias na ponta da língua, quase sempre com uma lição no final.

Não sou religioso nem fechado em circuitos judaicos, mas o judaísmo é mais do que uma religião, é uma cultura cheia de traços laicos. Basta pensar naquele espírito questionador, naquela densidade emocional mostrada por cineastas como Woody Allen e Mel Brooks. Tenho um amigo judeu que é ateu convicto, mas esbanja judaísmo ao falar que Deus não existe. Como? Questão de estilo. Judaísmo não é só o que se diz, mas como se diz.

3 - Ainda dentro desse território, seria possível pensar na existência de uma literatura judaica, ou você não gosta desses rótulos?

3. Acho difícil falar-se em literatura judaica porque o judaísmo é plural e existem escritores judeus totalmente diferentes uns dos outros. Além do mais, ninguém sabe demarcar as fronteiras entre o judaísmo e outras culturas. O povo judeu vive de assimilar e difundir saberes mundo afora. O que é a literatura judaica? Aquela que fala dos judeus? E o estilo, a estrutura do texto, existe alguma forma judaica de escrever? Acho que não. Percebo, isto sim, um núcleo básico do judaísmo que rende ótimas obras de artistas judeus. Os não-judeus tendem a ficar longe desse núcleo, por motivos que merecem uma boa análise.

4 - O tom de Traduzindo Hannah, como o conceito histórico e sua forma de dirigir a trama, parecem isolados dentro da literatura brasileira contemporânea. Ainda dentro desse raciocínio, você não mantém blog ou twitter ou qualquer outra estratégia de comunicação. Você se sente isolado de alguma forma?
4. Não sei se Traduzindo Hannah tem uma estrutura isolada na literatura brasileira. Será? Deixo a resposta para os leitores. Procurei ser autêntico, não diferente ou inovador. E os trabalhos verdadeiramente autênticos podem ser, inclusive, convencionais. Fiz cursos de roteiro para cinema e talvez por isso alguns leitores digam que meus livros são imagéticos, chegando a lembrar das histórias como se fossem filmes. Mas minha matéria prima é a palavra, não a imagem. E muito do que eu escrevo não caberia na linguagem audiovisual, como as reflexões que às vezes ocupam páginas inteiras de "Traduzindo Hannah".

Quanto aos blogs e twitters, preciso aprender a lidar com essas coisas. Não adianta querer me isolar num mundo onde o marketing pessoal dita as regras. As pessoas ficam se apregoando na internet, feito camelôs de si mesmas, contando intimidades, inventando novidades. Não é bem o meu perfil. Para que saber o que eu comi ontem à noite ou qual livro andei lendo nas férias? O que eu tiver que dizer, direi através de meus livros. Gosto muito de dar entrevistas e palestras, mas não me sinto um formador de opinião nem tenho ideias interessantes sobre tudo. Meu trabalho de escritor envolve mais suor e disciplina do que glamour. Além do mais, dá muito trabalho manter um blog, até um perfil no Facebook. E falta tempo porque também sou advogado e prefiro usar as horas livres para ler e criar o próximo livro, o que exige silêncio e pesquisa. Mas tenho pensado no assunto com carinho.

5 - Você já publicou por inúmeras editoras em sua carreira. É difícil para um autor em ascensão se fixar no cenário literário brasileiro?

5. Sim, é muito difícil. O Brasil tem milhões de artistas talentosos sem qualquer projeção. Mas não dá para apontar culpados numa realidade tão complexa. Estive numa editora que recebe cerca de cinco mil originais por mês! Como selecionar, separar o joio do trigo? Impossível. O lado bom é que a internet facilitou o contato entre artistas e público. Na literatura isso é mais verdadeiro porque a internet é um veículo perfeito para a palavra escrita, o que não acontece com as artes plásticas, com o teatro ou com a música. Oficinas literárias e grupos de leitura estão pipocando por aí, no mundo real ou virtual.
 
Outra coisa, com o perdão do óbvio: não existe um único cenário literário brasileiro. O país é uma colcha de retalhos. Há autores regionais ou temáticos com ótima projeção nas suas áreas. Acho que o melhor caminho para o escritor estreante é procurar seu nicho e conquistar cada leitor como se fosse o único. O leitor bem impressionado vai recomendar seu trabalho, lembrar de você, cobrar novidades, apontar seus defeitos e suas qualidades, pegá-lo pelo pescoço e gritar: por que você matou fulana??, o que aconteceu com beltrano?? Ouvir uma coisa dessas é a delícia do escritor. Justifica cada letra que você escreveu.

22.11.10

SAMUEL BENCHIMOL: UM POUCO-ANTES, ALÉM-DEPOIS - por José Ribamar Bessa Freire

" Numa crônica divertida, Nelson Rodrigues afirma que os ingleses não existem. A Inglaterra é, portanto, uma paisagem sem ingleses. O inglês, tal como o imaginamos - o gentleman de porte altivo, maneiras elegantes, dotado de sense of humour - é produto da nossa fantasia. Quem, então, mora na Inglaterra? São pessoas como os hooligans, aqueles torcedores violentos, estúpidos e bárbaros. Nelson Rodrigues abre uma exceção: "o único inglês da vida real, de fala mansa e sentimentos nobres, vive no Rio de Janeiro, é o escritor brasileiro Antônio Callado".

As exceções certamente seriam duas, se o cronista tivesse conhecido Samuel Benchimol, nascido ali, na rua Quintino Bocaiúva, em Manaus, no dia 13 de julho de 1923. Paraense por parte do pai, Isaac, cujo berço foi o barranco do rio Tapajós, e amazonense por parte da mãe, Nina, nascida em Tefé, esse canceriano honrou sua dupla identidade amazônica. Mas, apesar disso, continuou sendo um inglês legítimo, porque sóbrio, discreto, elegante, transpirando serenidade, polidez, delicadeza. Enfim, um lorde, de fino trato, com o seu "perfil de medalha, de moeda".

Nos 200 anos da comemoração do judaísmo amazônico, vale a pena ler a íntegra deste artigo sobre o professor Samuel Benchimol no site http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=308 O artigo foi publicado pela primeira vez em 08/07/2002 no Diário do Amazonas. 

8.11.10

Pintor revisitado

Quem é Felix Nussbaum ? Com esta pergunta, o Museu de Arte e História Judaica de Paris abre seu anúncio sobre uma importante exposição do pintor, cuja obra foi redescoberta recentemente. A exposição vai até 23 de janeiro de 2011. De família burguesa alemã, Nussbaum foi influenciado pelas vanguardas européias das primeiras décadas do século XX, e encarna o percurso de um artista que, a despeito do talento, acabou sendo definido também pela condição de judeu perseguido. Nascido em 1904, exilou-se na Itália, na Suíça, na França e na Bélgica após a ascensão de Hitler. Em maio de 1940, com o território belga invadido pelos nazistas, foi internado no campo de Saint-Cyprien, sul da França, de onde fugiu, voltando para Bruxelas com a mulher, Felka Platek, artista judia polonesa. Ao ser descoberto seu esconderijo, foi deportado em 1944 para Auschwitz, onde morreu.

Mulheres no Muro

Mais de cem mulheres de reuniram hoje no Kotel, o Muro das Lamentações, para o Rosh Chodesh, primeiro dia do mês de Kislev. E dessa vez não houve violência, ao contrário do ano passado, quando a ativista Nofrat Frenkel foi presa e objetos foram atirados contra o grupo. Mas muita gente ao redor dirigiu impropérios às mulheres, protegidas pela polícia.


As autoridades religiosas que controlam o Muro não querem que haja ali orações feitas por grupos mistos, cerimônias de Bat Mitzvah e cerimônias nacionais. Agora, mais de 400 rabinos de vários países assinaram uma petição exigindo que a polícia de Jerusalém proteja as mulheres que querem rezar e ler a Tora juntas no local. A mulher presa ano passado é membro do grupo Women of the Wall [Mulheres do Muro], que defende os direitos das mulheres usarem xales de orações e lerem a Tora ali.

“As Mulheres do Muro são bem-vindas, como toda mulher judia, ao Muro”, disse o rabino-chefe do Kotel, Shmuel Rabinovich, ao jornal Jerusalem Post. “É proibido que qualquer pessoa as machuque, a violência é totalmente proibida no Muro. Mas eu peço que elas se comportem de acordo com os costumes da área e que não insultem a sensibilidade das outras pessoas que estão rezando”.

Já a organizadora da carta, a rabina Pámela Frydman, de Los Angeles, disse o seguinte:

“É muito importante que sempre haja um lugar para que os homens e mulheres haredim fiquem confortáveis e de acordo com seu entendimento do que é a Halachá. Mas é igualmente importante para aqueles de nós que são ortodoxos modernos, conservadores, reformistas, reconstrucionistas e renovadores, que tenhamos um lugar onde possamos rezar de acordo com o nosso entendimento”.

6.11.10

Mulher rabina na Alemanha, primeira desde o Holocausto


Pela primeira vez em 75 anos, uma mulher foi ordenada rabina nesta quinta-feira na Alemanha, marcando a retomada de uma comunidade judaica devastada pelo Holocausto. Alina Treiger, 31 anos, originária da Ucrânia, tornou-se rabina durante cerimônia emocionante em uma sinagoga do oeste de Berlim, que contou com a presença do presidente, Christian Wulff. Ela é a segunda mulher ordenada na Alemanha. A primeira, também do mundo, tinha sido Regina Jonas, em 1935 - assassinada em Auschwitz em 1944, aos 42 anos.

Com cabelos ondulados loiros escuros e um grande sorriso, Alina era o centro das atenções, mesmo que outros dois estudantes rabinos estivessem sendo ordenados ao mesmo tempo. "Enchamos nossos corações de amor. Estejamos unidos no amor pelo Bem e pela vontade de impedir a violência e o conflito", disse durante uma "oração para a Alemanha" pronunciada ao término da ordenação.

No fim de novembro, Alina Treiger deve assumir a direção da comunidade da cidade de Oldenburg, próxima à Holanda. Ela afirma encarnar "a união de três culturas: judaica, alemã e a da antiga União Soviética". Nascida em Poltava, cidade de 300 mil habitantes que hoje pertence à Ucrânia, Alina Treiger estudou no colégio Abraham Geiger de Postdam, próximo a Berlim. Criado em 1999, foi o primeiro seminário rabínico da Europa continental desde o Holocausto.

Após a queda do Muro de Berlim, a Alemanha abriu suas portas para os judeus do antigo império soviético, vítimas de um forte antissemitismo, fornecendo a eles a nacionalidade alemã. "Na Ucrânia, a religião era esquecida pela metade", contou Alina Treiber.

Desde 1989, cerca de 220 mil judeus da extinta URSS chegaram à Alemanha, que contabilizava, na época, 30 mil judeus, contra cerca de 600 mil antes de Adolf Hitler chegar ao poder em 1933.  Uma boa parte deles partiu, principalmente para Israel. As comunidades judaicas na Alemanha contam hoje com 110 mil membros, quatro vezes mais do que há 20 anos, segundo o Conselho Central de Judeus da Alemanha.

Essa migração em massa permitiu em algumas regiões, principalmente da ex-República Democrática Alemã, a recriação das comunidades aniquiladas pelo Holocausto. Em Berlim, a comunidade judaica conta 11 mil membros, dois terços derivados da então URSS.  No entanto, a integração desses judeus levanta problemas e suscita conflitos. Alguns judeus alemães os acusam de serem "desjudaizados". A chegada desses refugiados teve fim no dia 31 de dezembro de 2004, quando a Alemanha impôs restrições à migração deles.

A ordenação, chamada semikha, é acessível às mulheres unicamente no judaísmo liberal. As raras mulheres rabinos estudaram, em sua maioria, nos Estados Unidos. "É um dia extraordinário!", entusiasmou-se o rabino Daniel Freelander, vice-presidente da União do Judaísmo Progressista da América do Norte. As primeiras ordenações de rabinos na Alemanha depois do Holocausto ocorreram em 2006.